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quarta-feira, 26 de julho de 2017

O lixeiro, o escritor e a babá

Quando era um petiz, o compositor Francisco Buarque de Hollanda não aceitava o fato do lixeiro fazer um serviço tão pesado e não ganhar mais que seu pai, que sustentava 7 filhos escrevendo à máquina, dentro de um escritório, com conforto. (Ele não aceitava a vida burguesa, mas não pensava em divisão. Curioso.) Ele queria que sua babá — ele tinha uma — se casasse com o lixeiro, mas ele não ganhava o  suficiente para sustentar uma família, pagar aluguel, contas, etc. Foi o que ela se queixou.

Passados quase 70 anos, a sociedade não "evoluiu" a ponto de abolir o recolhimento de lixo de nossas vidas, tampouco fez o lixeiro ganhar mais que um escritor. O lixeiro continua tão útil quanto um escritor, um jornalista, um compositor de música, um professor, um dançarino, um operário da construção ou um filósofo. (A babá, ao contrário, é um luxo social mesmo.) Cotidianamente, o lixeiro continua a passar em frente do seu prédio na zona sul carioca, recolhendo suas garrafas vazias de vinho importado e latas de caviar — presunção.

Durante sua trajetória de vida, aquele menino, que achava o mundo injusto e desigual,  não quis saber do trabalho braçal; ele foi impelido a ser como seu pai: viver dentro do ar refrigerado, compondo músicas e sustentando seus bens e luxos (e tudo que pudesse manter seu público com o velho discurso socialista). Teve talento para criações e não para carregar peso nos ombros. Era um sonho, um desejo pueril, mas pesou em sua escolha de caminho (de mundo melhor e justo), o fato de ser pertencente a ele. Tudo muda (e faz sentido) quando o interessado e sacrificado somos nós. Não há pensamento socialista que renegue o berço.

A desvalorização, se nós podemos dizer assim, de uns em detrimento a outros é milenar e, consequentemente, lógica na escala social da história da humanidade; o que fez, por milênios, o mundo ter sido  mais escravista. O que também se diferencia as pessoas pelo intelecto, talento, expertise e não por injustiça social. A uns foi dado o talento da ideia do que fazer com as pedras; a outros foi dada a força para carregá-las, transformando as ideias do criador em algo para o sustento da vida de ambos. E assim sempre será.

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / Julho de 2017

sexta-feira, 14 de julho de 2017

Utopia e realidade

O leitor, alguma vez, nas redes sociais, já deve ter deparado com uma foto de uma antiga (antiga?)  fita cassete e uma caneta esferográfica (dessas sextavadas) lado a lado. E um texto em seguida: "se você sabe a relação desses dois objetos, posso calcular a sua idade". E é verdade. Hoje, um espermatozoide cabeçudo, de 15 anos, não saberia mesmo dizer o que tem a ver uma coisa com a outra. Teria que ter vivido os anos 80, 70.

Confesso, pois, a primeira vez que deparei com a postagem me veio memórias — muitas coisas me dão saudade — daquele tempo mecânico, manual e nada digital: o disco riscava, o cassete enrolava no aparelho e a música não tocava. Até então, achava que só eu havia descoberto a técnica. Vou voltar no final do texto sobre essa época, porque me veio outras coisas interessantes agora.

Outro dia, depois de eu ter escrito numa postagem que índio no Brasil é vagabundo, fui chamado atenção, logo em seguida, por um colega músico. Ele disse: "E o Amor de índio, o Beto Guedes, o Clube da Esquina?". Desertei para não gerar a chamada treta, muito comum hoje nas discussões pelas redes sociais. Na verdade, ele queria me provocar: — já que você gosta das músicas, não pode tratar mal as ideias e inspirações de quem as cria. Dei de ombros e fingi que não li.

No tempo da fita cassete, não haveria tal provocação, discussãozinha — diminutivo de uma palavra que já nasceu grande — boba. Todo mundo se alimentava da mesma fonte. Éramos mais ingênuos em pensar que havia mesmo amor de índio; e era mais bonito pensar assim, mais poético, porque na nossa cabeça havia muito mais amor de índio que amor de homem branco.

A realidade é: os povos indígenas não cabem no mundo moderno. Índios não têm civilidade, são pedófilos, praticam infanticídios, degradam o seu habitat com caças predatórias. Na sua realidade, não vivem só de amor. Isso só na cabeça dos poetas. O amor e a magia tem ambiente em mentalidades utópicas. O mundo precisa de um choque de realidade; a distopia, a desconstrução dos sonhos de nuvens de algodão; ou do poema concreto, que demonstre a fome, a miséria, a verdade da vida. Tudo que se revela, como toda ditadura que se esconde por trás de democracias.

Na era do Smartphone não temos direito à muitas licenças poéticas. Poucos são aqueles que hoje mandam poesias metrificadas pelo WhatsApp. Vai aquele "Bom dia" costumeiro às 7h e depois é um despejar de realidade. E eis aqui onde que quero pautar. O que ocorre ainda com algumas pessoas — depois irei falar desse grupo — é que elas vivem a doce ilusão de um mundo poético e utópico, quando a realidade nos sufoca diariamente.

Por que artistas, intelectuais, músicos de MPB insistem no apego à ideologias e pensamentos de esquerda? Por que ainda vivem como idólatras de ídolos sanguinários como Fidel, Guevara, Stalin, Mao? Por que vivem a pregar um mundo de iguais, sendo eles mesmo tão diferentes e arraigados às riquezas? Por que eles se escondem atrás da realidade de um país? Porque não querem enxergar que o "amor de índio" já não cabe no dia a dia de um país chafurdado em corrupção, com sistemas públicos não funcionando e com 14 milhões de desempregados? Não dá para fazer poesia. A realidade nos atropela. É só discurso, discurso. Nada mais.

O jornalista e cineasta Arnaldo Jabor escreveu em uma das suas crônicas, que a esquerda envelhecida de hoje, ainda se apoia nos seus discursos que polariza burguesia e proletariado, muito comum no anos de 1960, porque têm vergonha de mudar de opinião, lado ou simplesmente aceitar a chocante realidade. Se o fizerem, irão romper com seu passado. E como ficarão com o público que os elevou? Muitos deles fizeram sua carreira em cima desse mote: — a ditadura me perseguiu. Pouco tiveram coragem de romper com o passado e pensar no pais do presente. Este mesmo país sob uma corrupção da esquerda que eles ajudaram a chegar ao poder. Escreveu também Jabor:
"Que interstícios percorrem as ideias dentro de suas mentes, para negar tudo que está acontecendo hoje? Não conseguem fazer uma reles autocrítica de suas crenças. Mudar de ideia é considerado traição. É uma visão paranoica de que o país está tomado por “fascistas” que querem tirar o PT do poder."
A verdade — aqui pegando por onde Jabor disse —, a "intelectualidade" da esquerda (dos artistas ainda engajados em velhos pensamentos dos anos 1960) perdeu o timing; perdeu o momento de dizer "não" à água podre que corrói as entranhas do país. Eles não têm mais discursos e por isso cantam ainda, como Milton Nascimento, "Menestrel das Alagoas", lembrando aquela campanha de 1985 por Diretas Já. É hora de se recolher e contar suas memórias; ou virar um colunista atacando o câncer do PT, como fez Ferreira Gullar nos últimos anos de vida — ele já foi do PCB. Não pode ter vergonha do passado. Mas eles não têm coragem.

Agora, em pleno momento de torpor, da dramaturgia política, de um país que tenta encontrar seu rumo depois do impeachment de Dilma, eles (esses mesmos artistas) vêm pedir Diretas Já, como se o momento fosse só o de romper com um governo e reiniciar um outro. Mas esse outro, que eles propõem, é o mesmo que eles elegeram, corroendo os cofres da nação. Ou seja, nada pode mudar e, sim, continuar como antes.

Também é de penar, ver que, ao final de suas jornadas, com uma carreira artística vasta e rica, artistas como Milton Nascimento, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque, terminem suas carreiras (todos na faixa dos 70 anos) de uma maneira melancólica e improdutiva. E tentam nos enfiar, como uma continuidade dos seus talentos, artistas como: Carlinhos e Mano Brown, Criolo, Emicida e Chico César. Todos da mesmo corrente utópica e ideológica. Muito diferente dos anos de 1960, as pessoas não os aceitam e nem consomem seus lixos musicais. Quem escuta é uma minoria.

A fita cassete enrolada por uma caneta esferográfica era a forma simplista de resolver um problema que a tecnologia da época não pensou. Tudo rudimentar, como apontar um lápis com a faca de cozinha. Mas tudo também de um tempo sem o policiamento do politicamente correto; quando as palavras eram soltas pelas bocas, sem uma patrulha por trás ou a vigília das redes sociais — ainda falam em censura durante o Regime Militar. Aqueles tempos, onde tais intelectuais ainda nos enganavam com seus discursos de mundo melhor, que hoje só demonstra que eles estavam mesmo atrás de dinheiro graúdo do Estado brasileiro.

A dor do brasileiro hoje é visceral; o país hoje clama é por justiça, segurança, educação, sobrevivência. Nada mais fisiológico. Acostumamos com tanta realidade, que as utopias, os amores de índio, as ideologias já não nos convencem mais como outrora.

Ninguém consome cultura sem antes ter comido o pão.

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / Julho de 2017