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quinta-feira, 15 de junho de 2017

Desconstrução

Esta crônica não começou aqui, mas nasceu numa conversa de botequim. Onde se conversa de tudo; e hoje, mais do que nunca, o assunto que supera o futebol é a política.

E não podemos tocar na política sem lembrar dos intelectuais, artistas de hoje (e antes) engajados — palavra muito usada no anos de 1970 — à correntes ideológicas e únicas de esquerda. Não, eu não sou daqueles que preciso saber o que um desses artistas de MPB pensa para tecer meus comentários. A bem da verdade, muitos deles se aproveitam, ainda hoje, da política para existir, ou melhor, difundir sua obra. É o caso da Lei Rouanet, que foi criada sob pretexto de incentivo à cultura dos anônimos, mas virou contrapartida, moeda de troca, aos artistas conhecidos e consagrados defenderem o governo de esquerda, que hoje nos rege, dono da lei, e sob qualquer viés. Como se todos nós fôssemos guiados por eles.

Poderia lembrar de outros aqui, mas o mais engajado sorridente, e quem mais se aproveitou dos governos (militar e de esquerda) foi Chico Buarque. Se projetou no regime militar e se condecorou no governo Lula/Dilma, como mito e símbolo de resistência. Ninguém mais do que ele é, até hoje, aclamado pela imprensa e toda a militância de esquerda como aquele que combateu a "ditadura", com suas músicas e peças de teatro. Combateu? Vamos voltar um pouco no tempo, reler e avaliar parte de sua obra. Uma desconstrução do autor de Construção? Sim, pode ser.

É inegável que Chico tenha sido perseguido pela censura do Regime. Não que suas letras eram balas de canhão a ponto atrair a massa e derrubar o governo — como a música que fez Geraldo Vandré — , mas só porque eram escritas por ele. Ele se fez, e hoje ainda se vende no meio artístico, como símbolo de resistência ao governo militar. Para isso, ousou em algumas letras, criou um pseudônimo e reescreveu algumas letras, trocando palavras, para ter suas músicas liberadas e gravadas.

Em 53 anos de carreira, Chico Buarque compôs, segundo seu site oficial, 343 músicas letradas (às vezes a mesma música com letras diferentes). Dessas músicas, nenhuma delas foi censurada no início de sua carreira até ser reconhecido como artista, de 1964 a 1969. Mesmo após o AI-5 (Dezembro de 1968), ele estava livre para compor e cantar. Sabiá, por exemplo era uma espécie de canção do exílio. Sem problemas nenhum, foi cantada no festival da Globo. Sua música mais tocada naquele final dos anos de 1960, Roda Viva, não sofreu corte nenhum da censura.

Somente em 1970 — e aqui começa tudo —, ele teve a sua primeira música proibida pela censura federal. Apesar de Você foi lançada num compacto simples — meu irmão tem até hoje essa raridade —, que tinha do lado B Desalento. Logo depois, quando perceberam que o "Você" não era nenhuma amante, mulher, etc, os discos foram recolhidos das lojas e a divulgação proibida nos meios de radiodifusão, pelos órgãos de censura. Subliminarmente era uma queixa clara ao governo militar. Muitos a chamam de "Carta ao Médici" ou "Carta ao presidente". Nessa época ele já tinha voltado do seu auto-exílio, em Roma.

Se levarmos em conta o valor de uma música que ficou no imaginário popular, como uma música de protesto (e que marcou um período), podemos dizer que só Apesar de Você e Cálice (1973), foram reconhecidas depois como músicas, com teor de crítica à política, e que sofreram censura ao longo da sua carreira. Isso não representa nem 1% da sua obra musical. Depois, ambas foram gravadas no LP de 1978, ainda dentro do Regime Militar. Foi mais um chororô de ocasião, e como a esquerda sempre interpretou bem nesse papel: vitimização. Para repetir até exaurir: — olha, eles estão me perseguindo. Fui censurado.

Alguém pode argumentar: mas ele teve outras músicas de cunho político censuradas, como Milagre brasileiro, Vence na vida quem diz sim, Tanto mar, etc. Essas não contam? Sim, mas sem a mesma importância. E o que eu digo, são aquelas que, mesmo censuradas, ficaram popularizadas, e sempre aparecerem em destaque na sua obra. Inclusive, depois, foram regravadas por ele mesmo.

As suas músicas censuradas (em partes ou integral), pelos órgãos de repressão do governo militar, eram por simbolizar aspectos negativos da vida social, ou aquilo que afrontava a "moral e bons costumes" da época. Partido Alto, por exemplo, teve palavras trocadas, porque ofendia a própria raça, o brasileiro. Disse o censor, que a avaliou: "Se é engraçado ou uma infelicidade para o autor ter nascido no Brasil, país onde ele vive, e encontra esse povo generoso que lhe dá sustento comprando seus discos, e pagando-o regiamente nos seus shows, afirmo que ele está nos gozando. Opino pelo veto." Depois que substituiu algumas palavras na música, o censor ainda lhe deu outra descompostura: "Como  é que você, que fez uma música como Construção, agora vem com esta, falando de titica e saco cheio." A música foi gravada.

Dos seus discos, nenhum foi mais comentado que Calabar. E aqui abro um espaço para descrever como a censura proibiu a peça e o disco, simultaneamente. Em 1973, Chico Buarque estava com 29 anos, e escreveu músicas lindas para a peça. Depois dos ensaios e pronta para estreia, ele soube que a peça havia sido proibida. Calabar, o elogia da traição soou como uma espécie de resposta à morte do Capitão Lamarca, desertor/traidor do exército brasileiro, por se juntar ao grupo de guerrilha Vanguarda Popular Revolucionária (VPR); se refugiando, por fim, no sertão da Bahia, onde foi encontrado e morto. Os órgãos de censura ao perceberem no meio a palavra "traição", não pensaram duas vezes em proibir tudo.

Das 11 músicas, do disco Chico canta Calabar (depois virou somente Chico canta), muitas tiveram parte das letras substituídas, ou estrofes retiradas (Tire as mãos de mim) e uma música foi totalmente censurada: Vence na vida quem diz sim. A capa, onde aparecia a palavra "Calabar" pichada num muro, também foi censurada. Na parte interna, no encarte do disco, a foto de soldados fazendo piquenique sobre a bandeira do Brasil também foi censurada. Ou seja, não sobrou quase nada. Apesar de tudo, o disco, com canções escritas por Chico e Ruy Guerra, é um dos melhores de sua carreira. A letra de Vence na vida quem diz sim, na forma como foi entregue à censura federal (anexa à esta crônica), aparece o carimbo de "vetada". Na canção Tire as mãos de mim, a última estrofe não foi gravada. Dizia:
"Por três tostões
Ganhaste um par
Hoje está sós,
Eunuco e coxo
Tire as mãos de mim
Põe as mãos em mim
Vendeste um teu amigo
até o fim
Agora leva o troco"
(A estrofe foi subtraída e não foi gravada. Quando comprei o livro Chico Buarque Letra e Música, não veio com essa estrofe. Mandei um email ao editor que me respondeu que na próxima remessa seria corrigido.)

O período duro e repressivo não durou muito, talvez quatro ou cinco anos e só. Em 1976, Chico escreveu três letras para uma mesma música. Nas três versões da conhecida O que será, a frase "o que não tem governo nem nunca terá" não foi censurada e foi gravada assim. A música inicialmente foi composta para o filme Dona Flor e seus dois maridos.

Nessa época, Chico Buarque, e grande parte da chamada MPB (dos artistas engajados) eram aclamados e muito populares nos meus universitários (ainda são até hoje); do outro lado, a maioria da população ouvia mesmo era Antonio Carlos e Jocafi, Benito Di Paula, Originais do Samba, Secos e Molhados e Os Incríveis cantando Eu te amo meu Brasil. Para o meio politizado, se você não ouvia Chico e a MPB você era alienado. Mas quem se importava com isso, se a vida não era tão repressiva como eles diziam àqueles que não deviam nada ao governo?

Naqueles idos, pelos arredores e calabouços, se falava muito em prisões e torturas. Que artistas haviam sido presos e torturados, citando sempre Geraldo Vandré (?); e que nele fizeram uma lavagem cerebral, etc. (Pois é, somente ele carrega essa pecha da tortura. Ninguém mais. Por quê?) Logo após aquela noite, da sua memorável apresentação no Maracanãzinho, depois de ser ovacionado com Pra dizer que não falei de flores, Vandré foi sentindo o peso de sua música no meio dos militares e no início de 1969, já com o AI-5, ele sumiu. Ele arrumou um jeito e escapou pelas fronteiras do país e ninguém mais o viu. Naquela altura sua música já estava na boca do povo. Ele voltou em 1973 negando a prisão e que havia sido torturado. Nunca mais compôs como antes. Nas entrevistas recentes, ele, aos 81 anos, continua negando peremptoriamente que tenha sofrido qualquer tipo de tortura. Passados tantos anos, quem vai dizer o contrário? Por isso, a esquerda o abandonou. Ele não cabe mais na sua narrativa.

Agora, quem verdadeiramente sofreu tortura moral naquela época foi Wilson Simonal. O negão era como se diz hoje, marrento. Dono de uma voz irretocável, tinha personalidade, talento e um domínio total das grandes multidões. Meu limão, meu limoeiro virou hit no final dos anos de 1960. Era um showman. O que ele não estava nem aí, era com o que acontecia no país: do governo militar e aqueles que queriam derrubá-lo. Ele só queria cantar, andar nos seus carrões, se encher de dinheiro e ter as mulheres que queria. Foi acusado, por seus parceiros de música, de ser um informante do governo. (O que ninguém conseguiu provar até hoje.) Sua carreira acabou ali. Isso, sim, foi tortura. E ninguém, desses, veio lhe pedir desculpas, nem post mortem. Morreu anos mais tarde, alcoólatra, sem nunca conseguir provar sua inocência.

Outro dia, uma seguidora do meu Twitter se surpreendeu,  por eu ser arquiteto, e ter um pensamento tão conservador. (Os arquitetos são, na maioria, revolucionários de esquerda.) São outros tempos ou outros homens? Tempos de realidade e não de utopias (outra crônica). Por mais que a arquitetura tenha seu  broto e processo criativo numa visão utópica de mundo, mas a sua transformação é realidade que se toca, que se vê e se admira como poema concreto. Os sonhos são devotos, revigorantes, mas só o real encontro com a vida nos torna pessoas.

Assim, muitos outros também me questionam, porque passei a vida toda colecionando a obra do Chico Buarque (discos, livros, songbooks, DVDs) e hoje sou crítico. Bem, ao longo a vida a gente aprende muitas coisas. Uma delas é apartar o artista (e sua obra) da pessoa. Dizem que Chico Buarque vai lançar um novo disco em 2017. E dizem, até, que há uma música escrita para o Lula. Sempre esperei muito por seus discos chegarem às lojas. Hoje, nem tanto. Talvez, eu compre para continuar a coleção, mas não será com o mesmo entusiasmo quando comprei o LP "Chico Buarque 1978", ali nos meus 16 anos. Não será mesmo!

E para finalizar essa conversa, cheia de retrospectos, lembro da entrevista célebre do escritor Millôr Fernandes ao programa Roda Viva, da tv Cultura. Uma das perguntas, que veio de telespectadores, se referia da sua suposta briga com Chico Buarque. Millôr não quis polemizar, mas afirmou que não havia brigado, e alfinetou: "os defeitos de Chico Buarque se juntaram comigo. Defeitos que não tenho". E concluiu numa frase imortal: "Eu desconfio de todo idealista que lucra com seu ideal".

(Você pode dizer que esta crônica é a desconstrução de um mito. É sim. No entanto, a pior das torturas, carregadas de censuras, não estão nos tempos da repressão, onde vinha com o carimbo "vetada", do censor que tinha rosto. A pior são as censuras em tempos de democracia, porque elas vêm da forma mais rasteira e velada.)

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / Junho de 2017

segunda-feira, 5 de junho de 2017

Um abajur cor de carne

Ali, no início dos anos 80, havia tanta música boa tocando, que nós, jovens, rejeitávamos um punhado delas ou colocávamos na prateleira do desprezo por acharmos bregas. Assim, o que queríamos ouvir, comprávamos ou emprestávamos o disco; e as outras, aprendíamos a cantar, mesmo sem querer, porque as rádios não paravam de tocar. Ritchie era essa música que grudava nos ouvidos como goma de mascar.

O inglês Ritchie foi uma figura icônica dos anos 80. Ou: sem ele aqueles anos não teriam acontecido, musicalmente falando. Do seu famoso e álbum "Voo de coração", cinco músicas estiveram no hit parede entre 1983 e 1984. Suas apresentações eram constantes e obrigatórias nos programas de auditórios. Rosto fino, loiro, blusão de couro preto, usando óculos Wayfarer e aquele sorriso despontado pelos pontiagudos caninos (não era belo, mas mesmo assim, havia mil garotas a fim).

E o que era Ritchie para mim? Aquela música que ouvia por tabela: na discoteca, de passar pela rua na frente da loja de disco; e depois sustentava para os amigos que não gostava, porque iam me tachar de brega. Mentira!, gostava sim. Depois desses 34 anos (1983), ainda curto demais suas músicas. Está na minha playlist do pen drive. Sem nenhum rubro na face.

Mas ali, nos anos 80, havia uma outra coisa fascinante. Os discos vinis (bolachões) tinham capas bem elaboradas e encartes com as letras das músicas. As revistas para tocar violão também tinham as letras cifradas. Assim, ficava difícil confundir palavras, frases e cantar errado, como teve gente que passou a vida cantando "Trocando de biquíni sem parar" (Noite do Prazer - Brylho), quando a letra dizia "Tocando B.B. King sem parar". Nada tão mal. Só a confusão de um gênio do Blues com um vestuário feminino de praia. Repetiam o que ouviam sem reparar na letra. Eu, por ofício, sempre tive esse hábito de ler letras, os autores, o arranjador e os instrumentos que estavam presentes naquela música. Dificilmente cometia tal gafe.

Uma fórmula que todo letrista de música — poeta, por que não dizer? — tem em mente (ou não tem) é sentir nas palavras que vem, que elas, muitas vezes, vêm soltas e vão, em seguida, encontrar uma outra e outra... E não necessariamente essa fará junção com a primeira, ou será correspondente, dando sentido à frase: "De um quasar pulsando loa. Interestelar canoa. Leitos perfeitos, seus peitos direitos me olham assim. Fino menino, me inclino pro lado do sim. Rapte-me, adapte-me, capte-me, It's up to me coração". O uso de hipérboles, como "morrer de amor" ou "coração partido", são coisas corriqueiras na linguagem poética.

Eu não tinha dúvida nenhuma que, ao escrever "Menina Veneno", o letrista Bernardo Vilhena quis dizer que o abajur era cor de carne. Nós estávamos nos anos 80 e mais acostumados com essas colocações poéticas que não faz sentido. Qual é a cor da carne? Sei lá. Poderia ser "cor de caramelo", ou algo assim. Estava licenciado.

Não faz muito tempo, vi uma entrevista de Ritchie e ele disse que a letra foi escrita na sala (não lembro se era da sua casa). Mas eles foram construindo a letra com aquilo que viam no ambiente: cortina, escada, porta, abajur, lençol, cama, parede, etc. E assim nasceu Menina Veneno, como uma sombra, a silhueta do fantasma de uma mulher, dessas que atormentam a mente masculina.

Mas eis o que queria dizer. Eu, no Twitter, sigo algumas celebridades. Até para ver o que pensam. Faz pouco tempo comecei a seguir o Ritchie. Depois de algumas postagens, me apartei do assunto e perguntei a ele quem trocou a letra da sua música e inventou o "abajur cor de carmim". (Nas redes sociais já postaram inúmeras vezes a letra com "cor de carmim", e eu me cansei de reparar as pessoas do erro). Aguardei 12 horas para ele me responder: "Foi alguém que não sabe ler. ;)", escreveu de forma lacônica e direta. Exatamente aquilo que eu disse acima: as pessoas ouvem e saem reproduzindo, sem ler ou prestar atenção. Aquele hábito da época do Vinil: de ler as letras das músicas. Quem viveu os anos 80, sempre cantou como eu: "abajur cor de carne", sem se perguntar se havia sentido concreto. Há sentido e realidade em poemas? Tema para outra crônica.

— Então, diga aí Ritchie, cor de carne ou de carmim?


© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / Junho de 2017