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terça-feira, 27 de setembro de 2016

Quando minha alma arrepiou


Geraldo Vandré - FIC - 29/09/1968
Devo confessar que nunca fui um bom speaker; não sei falar em público, ou aquilo que, talvez, eu dissesse bem melhor escrevendo. Até nos meus áudios de WhatsApp (risos) me acho horrível: voz e colocação. No entanto, às vezes, tento ser professoral nas minhas exposições. Acho que os professores (não doutrinadores) conseguem aprender muito com seus alunos também. Até por que alunos perguntam.

Já expliquei inúmeras vezes — agora com mais compreensão — os anos do regime militar que o país viveu. Cada vez que falo sobre o tema para alguém, parece que aprendo mais. Tudo ficou mais claro para mim. Tudo que eu lia nas entrelinhas (nas frases deixadas nos muros pela esquerda), agora se fecha dentro de um contexto. Com começo, meio e fim.

Estou lendo o livro do Professor Marco Antonio Villa (guardado na estante há tempos) "Ditadura à brasileira". Acho que merecia até um outro título: "O regime militar brasileiro". Afinal, vivemos, de fato, uma ditadura? Com essa pergunta quero iniciar essa conversa. 

Quando penso nesse período, volto à minha velha infância e tento lembrar de como éramos em casa. Vida pobre: um pai operário, uma mãe dona de casa, irmãos estudando em escola pública (como eu) e comendo o que era acessível: arroz, feijão, batata frita, ovo, carne moída, e café com leite misturado com farinha de milho. Nada mais que pudéssemos ter. Vida simples, mas sem faltar nada, nem mesmo o material escolar.

Mas e o Brasil? E a política? E a chamada ditadura? Éramos um país também miserável, pobre economicamente, mas de um povo trabalhador. Como interiorano, só fui me ater à palavra ditadura — e que eu fazia parte dela — ali pelos meus 17 anos (1979), quando veio toda aquela conversa de anistia ampla geral e irrestrita; e lembro da Elis cantando "O bêbado e o equilibrista", só isso. Antes disso, era tudo muito quieto dentro de mim, e sem muitas perguntas. Talvez eu fosse um alienado — palavra muita difundida nessa época —, porque não me julgava alguém cercado por barricadas e preso num mundo dominado por um ditador.

É isso que queria dizer. Ditadura tem que ver com o grande líder. O Brasil do regime militar (1964 a 1985) não teve um grande líder ditador. Ditaduras têm um cortador de cabeças, um escravizador, um partido dominante. Nós não tivemos. Vivíamos numa carestia, claro, mas éramos livres para estudar, trabalhar, ir à igreja, ter lazer. As pessoas podiam abrir seus negócios, ter patrimônios, sem dever nada para o governo que não fosse os impostos. Não havia um Estado centralizador e poderoso, o que caracteriza, de fato, uma ditadura. 

E os rebeldes? E a luta armada? E as torturas? Aí começa toda uma história, de um país paralelo, que a maior parcela da população desconhecia. Não só por que a notícia era censurada, mas porque era alheio às pessoas que só queriam trabalhar e tocar sua vida. Mesmo depois do AI-5 (1968), o governo permitia que você fizesse o que quisesse, estabelecendo um critério de censura moral nos meios de comunicação, que não fez mal a maioria das pessoas. Fez mal àqueles que enfrentavam o governo (sem conseguir convencer a população das suas causas). Noventa milhões que não deu a mínima para dez mil revolucionários. O governo só lutava — e aí está o ponto — contra aqueles que queriam derrubá-lo: grupos terroristas de luta armada. O restante da população estava pegando o trem na Central do Brasil.

Antes de 1964, o país vivia uma tensão, com o comunismo nas portas, pronto para entrar. O povo, naquela memorável "Marcha da Família com Deus pela Liberdade", sentia e pedia os militares no poder. Era a força da igreja católica fazendo frente ao iminente comunismo. Os militares ouviram o clamor, entraram na briga e tomaram o poder num contragolpe, sem derramamento de sangue. Só a imposição e o bafo no cangote pôs todo mundo para correr. Um jornal da minha terra estampou no dia 1º de Abril de 1964: "Venceu a democracia".

Daquela esquerda derrotada, vejo três grupos separados. O primeiro, tão logo os militares entrarem, saiu correndo pela porta dos fundos, fugiu do país — os políticos. Um outro, correu para a clandestinidade a construir barricadas, organizar grupos terroristas em aparelhos também clandestinos — a chamada luta armada. E o terceiro grupo, se camuflou (como quem era isento), nas redações de jornais, revistas, universidades, meio artístico, cultural e — pasmem — na igreja católica. Quem influenciou a minha geração? O último grupo. Esse grupo propagou e difundiu a palavra ditadura (e todos os chavões), que perdura até hoje. O gramscismo sendo aplicado.

O fato fica evidenciado e claro. Tudo que se publicou no meio cultural, em forma de livros, peças de teatro, textos jornalísticos e na música popular brasileira, tinha a tinta de uma esquerda inconformada, irada, raivosa, tendo aqueles milicos atravessados na garganta. Um ódio que varou décadas. E esse ódio não era por que eles buscavam livrar o país dos militares e da ditadura, mas por que não conseguiram o seu intento: transformar o Brasil numa grande pátria comunista, tendo o proletariado como escudo e modelo.

Isso foi confirmado pelo jornalista Fernando Gabeira, em entrevista. E como todos sabem, Gabeira foi partícipe e atuante dessa esquerda, a da luta armada. Então, procure a palavra democracia na boca dessa gente, que nunca encontrará. Eles não lutavam por uma democracia, mas por uma ditadura; a pior e mais cruel ditadura de esquerda. E assim, seguindo a voz de Lênin (chame-os do que você é), a palavra ditadura ia colando nos ouvidos das pessoas, enquanto gozavam de liberdade, e o Maracanã lotava num FlaFlu, com 200 mil pessoas, sem nenhuma revolta ou briga. Era ditadura?

Já faz uns dois anos assisti um episódio reprisado da novela Dancin' Days (1978), e uma cena me chamou atenção. O personagem de Eduardo Tornaghi entra num restaurante segurando um livro. O livro, que identifiquei pela capa, era "As veias aberta da América Latina", escrito pelo escritor uruguaio e comunista Eduardo Galeano. Nesse mesmo ano, esse livro figurava na lista dos mais vendidos do país. Que ditadura militar (de direita) permitiria um livro comunista nas livrarias? Essa ditadura não existiu.

Li, ali pelos meus 20 anos, o livro "1968, o ano que não terminou" de Zuenir Ventura. Depois, "Batismo de Sangue" de  Frei Betto. Ambos livros narram a história do período militar, romanceada, de heróis e bandidos, contada sob um único ponto de vista: da esquerda. No livro de Frei Betto, por exemplo, logo no início você já se depara com a narrativa da morte de Carlos Marighella. (Você quase entra em lágrimas.) Anos mais tarde, fui descobrir que se tratava de um terrorista, assassino e cruel.

Em 1992, o novelista Gilberto Braga pôs no ar a minissérie "Anos Rebeldes". Mais uma vez vimos uma história contada só sob um único ponto de vista. Aqueles estudantes eram tratados como heróis que queriam livrar o país dos algozes militares. No mesmo instante que a minissérie ia ao ar, na vida real, o jovem Lindbergh Farias movimentava os estudantes contra o caçador de marajás, Collor, ao som de "Alegria Alegria".

Hoje, lembro do meu pai, e nunca ter ouvido dele que o governo militar era cruel e perseguia pessoas.

A verdade é: esse terceiro grupo influenciou as gerações seguintes. Com esse grupo aprendemos a odiar a burguesia, os milicos, a ditadura, a censura, o patrão, o capitalismo, os EUA. Ao mesmo tempo que exaltávamos a esquerda, o marxismo, Cuba, o socialismo soviético, os artistas engajados da MPB, Carlos Lamarca, Che Guevara, os sem terra, a reforma agrária, o sindicalismo, a classe operária e depois o PT.

Esse terceiro grupo colocou esses comunistas, derrotados de 64, novamente no cenário político, agora anistiados e sobre a via pavimentada da democracia. Fomos teleguiados por esse discurso de ética, moral, contra a burguesia e os milicos — ali já no limiar dos anos de 1970. E sobre os ombros trouxeram Lula, o operário nascido e criado no seio do povo, ao posto máximo do país.

Mais analítico, hoje vejo esse mundo, vacinado dessa doutrinação da esquerda que buscou se vitimizar (pós-64). Como também não vejo tão clara essa divisão extrema entre esquerda e direita. O que percebo são os traços fortes de uma sociedade que se separa em dois cenários; de um lado os conservadores e de outro os progressistas.

Como disse, vi meu pai criar muitos filhos sem dizer um pio contra o governo e praguejar contra o mundo, o capitalismo, etc.; ao mesmo tempo que lutava com todas suas forças para manter a estrutura familiar em pé. Então, me sinto hoje um cidadão amadurecido e conservador. Penso num mundo de sociedade de mercado acontecendo, um governo enxuto e menos intervencionista. Preservando a família, a religião e a propriedade privada. O Brasil, majoritariamente, é conservador, mas governado por progressistas; esses ainda ressentidos com 1964.

Penso ainda, todo progressista é um ser inquieto que, no ambiente político, deixa exposto toda sua ira com o mundo. Nada está bom. Utópico, carrega dentro de si revoltas íntimas e mal resolvidas que, para se livrar, deposita nas costas de um governo, da sociedade e do sistema econômico. Aos seus olhos, o mundo está errado e ele certo em querer revolucionar. E assim, quer trazer todos para dentro das suas crises, até aquele que está em paz de espírito. O mundo que ele quer mudar, eu só quero conservar e entender.

Caminhando para o encerramento (sei que são poucos linhas para descrever um período tão complicado da nossa recente história.), concluo.

No final da minissérie de Gilberto Braga, o casal antagônico, Maria Lúcia e João, tenta se acertar, depois que ele volta do exílio, ali por volta de 1979. Ainda descrente daquele amor, ela quer dar a ele uma chance, mas logo percebe que nada nele mudou. Ele continua com suas revoluções acumuladas e a luta armada na cabeça. Querendo consolá-la, já em tom de despedida, ele diz agora concordar com ela, quando, lá no Festival de 1968, ela dissera preferir "Sabiá" a "Caminhando". Ele reconhece, 11 anos depois, que ela estava certa: "Sabiá" era melhor. Mas eles não ficam juntos.

Está aí mais uma coisa que esse terceiro grupo também nos convenceu: a música deles. Nos fez aplaudir, emocionar. Eu colocaria uma dessas canções em cada braço para arrepiar os pelos. A esquerda conseguiu influenciar minha geração, porque tinha os intelectuais, os melhores atores, as melhores canções; sabia escolher palavras, construir frases, contar histórias; por um sentimentalismo e vitimismo de compadecer. Essa esquerda, que se apossou da cultura do país, soube mexer com a emoção e fazer toda essa geração (pós-64) sentir que nada poderia haver de melhor, atraindo todos a sua causa ideológica. Basta lembrar a campanha de Lula de 1989, o que mais havia era artista e intelectual engajado.

Os pelos dos braços continuarão arrepiando por muitas canções, mas agora sem esse sentimentalismo exacerbado, que controlo sem que me cerque. Agora posso dizer: nenhuma dessas canções conseguiu arrepiar mesmo foi a alma. E dela posso sentir, quando ouço e leio palavras que me encorajam, que agora me encontram compreendidas. Falo de liberdade, democracia, justiça, compaixão, amor, esperança e a busca incansável pela verdade. Aí minha alma arrepia.

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / Setembro de 2016

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

A taça de vinho (quase) vazia



Meu domingo à tarde, com o sol ardendo lá fora, é aqui dentro. Aqui dentro de casa, deste escritório, dentro de mim e na frente desta tela. Esqueça o churrasco, os amigos, a conversa fiada. Quando venho para cá (para este Blog) é por que o caldo entornou; é por que há muitas frases soltas, vírgulas e et-ceteras no caminho — um divã de palavras. (O et-cetera de "Crônicas" são as batalhas que não se esgotam.) Pode o mundo ruir, mas as questões nunca. Sempre caberá uma pergunta derradeira no fim do mundo: Por que acabou?

Bem, não sei por onde começar, o que me incomoda desde quando saí caminhando da igreja, mas vamos lá.
 
Se o leitor atual revirar aqui no Blog, vai encontrar o texto Eu não tenho mais tempo para errar, onde eu abordo sobre essa inquietude que acomete as mulheres, de querer formar uma família, ao mesmo tempo que a fertilidade vai escorrendo por entre os dedos. Era uma preocupação da ocasião. Então, volto a questionar essa mulher caminhando para o amadurecimento (entre os 30 e 40 anos).

Foi esses dias, fiquei entalado pela saliva, depois de me ater numa conversa de botequim com mulheres nessa faixa etária. Descobri que, elas já não pensam tanto assim sobre essa vida partilhada e família constituída como regra social. Elas já buscam outras causas (focos), que não sabem bem o que são, mas é para lá que querem ir. Como entender isso? Estou tentando.

Então, inquiri: — Você quer casar e ter filhos? E a resposta veio negativa. Encontrar alguém, sim, com quem possa passar umas horas, viajar, fazer sexo, mas nada de ter responsabilidades com filhos e outras preocupações. Decifrei algo mais: ela, ao que me parece, nem deseja desfrutar do mesmo teto. E ainda fez uma auto pergunta: — "Será que precisamos mesmo encontrar alguém?" Algo traga essa mulher para um lado escuro da vida. Ela não sabe, porque desconhece essas forças do mundo que a embaraça e transporta seus olhos para outros desejos.

Para muitas delas, um homem do lado — sem muitos traumas do passado, claro — é o suficiente; aí pode complementar com um cachorrinho, ou um gato e já basta. Nada que dê muito trabalho. Depois, ela é uma mulher fitness, que pedala, corre, sai com as amigas (cazamigas), faz pós, faz selfie no face, ri muito, faz serão, etc. Uma mulher sem tempo para banalidades e coisas ultrapassadas como carregar uma barriga por nove meses. Em consequência, a celulite que isso gera. Deus me livre!

O que tem mudado esse comportamento? O que faz essa mulher jovem escolher o caminho da academia ao do altar e maternidade? Por que ela não tem mais medo do pejorativo "solteirona"? Talvez estejamos mesmo passando por esse período, como uma sombra que paira sobre um mundo já sem afeto, de alegria triste e tudo que a expulsa para fora desse modelo social. Pode ir embora ou ficar por longo tempo.

O relativismo moral, muito presente em nossas vidas, minimizou o pecado, a tragédia, o rubro da face, a culpa; não há certo ou errado, bem ou mal, belo e ridículo; porque tudo virou ponto de vista — uma quebra de regras seculares. Essas coisas que nos deixam mais light e não nos implicam mais com nada — a cabeça erguida, sem culpa, diante do ato mais vexatório. A verdade foi arrancada do mundo pelo ponto de vista de um idiota. Quem lhes tirou o sonho do vestido de noiva? E do buquê? E da lua de mel?

Li uma entrevista do psiquiatra Augusto Cury, onde ele afirma que temos uma geração triste e depressiva. Ele fala desses novos seres que ainda estão dentro de casa, dando trabalho aos pais. Mas posso dizer que, a geração da tristeza-sem-razão é contagiante, está em nós, adultos. O mundo anda triste, sem razão:
"Nunca tivemos uma geração tão triste, tão depressiva. Precisamos ensinar nossas crianças a fazerem pausas e contemplar o belo. Essa geração precisa de muito para sentir prazer: viciamos nossos filhos e alunos a receber muitos estímulos para sentir migalhas de prazer. O resultado: são intolerantes e superficiais. O índice de suicídio tem aumentado. A família precisa se lembrar de que o consumo não faz ninguém feliz. Suplico aos pais: os adolescentes precisam ser estimulados a se aventurar, a ter contato com a natureza, se encantar com astronomia, com os estímulos lentos, estáveis e profundos da natureza que não são rápidos como as redes sociais."
Ninguém quer lutas muito pesadas e cruzes para carregar. Todos fogem dos problemas com medo de não dar conta. Desejam viver o superficial da vida, evitando tropeços, arranhões e quedas. Um filho que chora, um marido que trai, uma casa para cuidar, uma conta bancária no limite do cheque especial? — Estou fugindo disso! — pensa essa nova mulher.

E não digo que há um dedo do sexo masculino nisso (nessa mudança de pensamento). Há sim. Desde que o sexo ficou fácil, o amor ficou difícil. A frase que já li por aí é, sim, verdadeira. O jogo de sedução do homem é agora também o dela. Elas se jogaram na vida.

O jornalista Arnaldo Jabor disse numa entrevista que, nos anos 1960, para você comer uma mulher que estava afim, não era assim tão fácil. Você tinha que ter pensamentos revolucionários, ser marxista, de esquerda (ou dizer que era), demonstrar um certo ar de rebelde sem causa, etc. Hoje a coisa mudou. O homem não precisa muito esforço para seu intento, basta que tenha um pouco de dinheiro e ostente algo que não tem; depois que esteja no lugar certo, na hora certa e disponível. Então, você quer dizer que ficou chato ao mesmo tempo que ficou fácil? Sim, o sexo casual banalizou o desejo pelo sexo oposto. É muita oferta com pouca qualidade. Mas quem quer qualidade?

Uma coisa que me vem agora é, depois que o Estado brasileiro resolveu interferir na condução da família, impondo a  tal lei da palmada junto com o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), os pais perderam a autonomia para criar filhos ao seu modo. Em consequência, essas solteiras passaram a enxergar um estorvo e aí desistiram do desejo. A impressão clara é que, o governo petista, que nos guiou por 13 anos, trabalhou contra o modelo de família. Com isso, a família passou ser qualquer união entre pessoas, mesmo que dure uma semana. Eles conseguiram nos atingir.

Faço um novo parênteses, para lembrar um trecho de um texto de Luiz Felipe Pondé, publicado na Folha de São Paulo, onde ele fala de pessoas críticas (muito comum nos dias de hoje) e como elas estão destruindo o desejo:
"Outro fetiche é o da revolução. Toda pessoa crítica faz uma revolução por fim de semana. Mas, entre todas, a mais ridícula é a revolução sexual, aquela que matou o desejo e o afeto entre homens e mulheres. Quando, no futuro, estudarem nossa época, perceberão que, entre as baixas causadas pela gente crítica, estarão o afeto e o desejo. Nunca ambos foram tão falados e tão combatidos a pauladas. Afogados na banalidade das quantidades."
A morte do desejo e o afeto, é isso, só pode ser isso que está acontecendo. Quanto mais nos tornamos amantes da nosso umbigo (amar a si mesmo), mais deixamos de ter desejos e afetos. O que vamos concluir lá na frente, que não precisamos de ninguém, nos bastamos. Sem percepção e mais contato dos sentimentos que estão indo embora do mundo. Quando o sexo tornou-se um assunto político e saiu da cama, banalizou e virou discurso de tribuna, e não mais o desejo de um pelo outro.

Tudo vem para embaraçar, criar nuvens de fumaça onde tudo parece ser tão simples. Como ensinar, por exemplo, seus filhos que há outros gêneros além do masculino e feminino? E que ele pode ser o que quiser (homem ou mulher); e se ele demonstrar seu machismo por aí vai sofrer represálias. Os portais de notícia — leia a UOL e saberá — vivem trazendo temas polêmicos (pelo menos eles acham), para uma sociedade, majoritariamente conservadora, discutir. Levam pau nas redes sociais. Ninguém quer saber se há homens transando com homens, mesmo não se achando gays por isso — o que eles chamam de HSH. Quem eles querem atingir com isso? Tirar pessoas do armário, talvez.

Como que a humanidade passou milhares de anos, sem saber, e só agora esses jornalistas bonzinhos vêm nos trazer esses novos arranjos? Essa gente pensa que o mundo começou nos anos 1960, só pode. Depois, eles mudam os termos para dizer que há algo novo e bom que só nos "fará crescer como seres humanos". Falo do tal "poliamor" (entre aspas), uma prática que estão dando manchete como uma nova roupagem ao que já chamávamos antes de suruba, ou poligamia.

Esses progressistas são os contribuintes desse mundo, que dizem ser melhor; eles estão dando um fim no desejo, no afeto, no interesse singelo e milenar entre homens e mulheres. O que essa gente quer para o mundo? Eu não sei, porque eu sempre pensei em preservar o que eles querem mudar. É uma luta eterna.

Neste momento (caminhando para o encerramento desta crônica), no arrebol desta tarde, essa balzaquiana, de quem eu falo, está numa festa com amigos, bebendo, fazendo selfies, sem muita preocupação que amanhã é segunda-feira, e ela terá um dia hard pela frente. (E essa não é a vida?) Mas, nada que uma boa aula de bike no fim do dia não renove. Depois, ela vai para casa comer o que tem na geladeira e ficar de pernas para o ar no WhatsApp.

E este cinquentão está aqui, pensando nela. Sob um pavor, que esse mesmo mundo que a tragou, também com ele está flertando: venha, venha... Percepções e sintomas de quem tem como única companhia, aqui e agora, a solidão de escritor — eles são sempre solitários — e junto uma taça de vinho quase vazia. Acabou. Por que acabou?

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / Setembro de 2016