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quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Inimiga pessoal da mulher




Não sei se repararam, mas há qualquer coisa de alucinatório no Galeão. Os idiotas da objetividade dirão que se trata de um aeroporto, como outro qualquer. Engano. Há fatos e tipos que só acontecem no Galeão. Vamos supor: — acaba de descer um jato.
Ora, o jato entrou para a nossa rotina visual. Já o vimos às centenas, aos milhares. Mas o importante no jato não é o jato, e sim o seu elenco singularíssimo. Quando ele pousa, ainda saturado de infinito, estejam certos de que tudo é possível. Coloca-se a escadinha e abre-se a pequena porta. E, então, os passageiros começam a sair.
Descem rajás, mágicos, domadores, mímicos, profetas, bailarinos, e até brasileiros. Quanto aos brasileiros, já os conhecemos e passemos aos demais. Falei nas velhas internacionais que qualquer jato traz e qualquer jato leva? E, se duvidarem, até vampiros desembarcam dos prodigiosos aviões. Ou comedores de orelhas ou o índio que devora giletes.
Mas não falei de uma figura que é de uma singularidade ainda mais impressionante do que as citadas. Refiro-me à sra. Betty Friedan, líder feminista norte-americana. Digo “líder feminista” e começam as minhas dúvidas. Sempre escrevo que ninguém enxerga o óbvio, ou por outra: — só os profetas o enxergam. Pois é óbvio que a sra. Friedan não tem nada a ver com a mulher. E pelo contrário: — é uma inimiga pessoal das mulheres.
Não sei se sabem, mas a mulher tem vários inimigos pessoais. Um deles, e dos mais cruéis, são os grandes costureiros. É claro que os pequenos também. Mas dou um destaque especial aos costureiros célebres, que inventam modas, que milhões de mulheres seguem, em todos os idiomas, com uma docilidade alvar. A única coisa que os move, e os inspira, é a intenção evidente e obsessiva de extinguir toda e qualquer feminilidade.
Imagino o escândalo do leitor: — “Mas por quê, ora pinóia?” (“pinóia” é a gíria finada que acabo de exumar). Aí está um mistério nada misterioso. O autor dos vestidos vê a mulher corno a rival que o há de perseguir, do Paraíso ao Juízo Final. E, por isso, o empenho com que trata de transformar a mulher numa figura cômica.
Corno são desinteressantes as mulheres que se vestem bem. E o pior é que os costureiros, com diabólico engenho, atingem em cheio os seus objetivos. Realmente, nunca a mulher foi menos amada. Outro dia, remexendo nos meus velhos papéis, descobri uma crônica de dois anos atrás, em que eu próprio escrevia: — “Nunca a mulher foi tão pouco mulher, nunca o homem foi tão pouco homem”. O raciocínio é simples: — se a mulher é menos mulher, o homem será menos homem.
Há, sim, de um sexo para outro, um tédio recíproco, que já não permite nenhum disfarce. Eu disse, certa vez, que a lua-de-mel começa depois da lua-de-mel. Hoje, diria que a lua-de-mel acaba antes da lua-de-mel. Por outras palavras: — não há mais a lua-de-mel.
O que a sra. Friedan quer é, justamente, liquidar a mulher como tal. Se vocês espremerem tudo o que ela diz, ou escreve, descobrirão que a nossa ilustre visita pensa assim, mais ou menos assim: — “A mulher é um macho mal-acabado, que precisa voltar à sua condição de macho”. Dirão vocês que estou abusando do direito de interpretar e fazendo um exagero caricatural. Pelo contrário: — estou sendo fidelíssimo ao sentido dos seus textos, de todas as entrevistas que concedeu, em todos os continentes.
Temos aqui em "O Globo" uma repórter adolescente e linda. Mas adolescente e linda pode parecer pouco para a reportagem. Acrescentarei que, além disso, é inteligentíssima. A sra. Friedan recebeu a nossa imprensa em entrevista coletiva. Não sei se foi coletiva. Só sei que recebeu a nossa menina e disse o que lhe veio à cabeça, com uma audácia, com perdão da palavra, cínica.
Para a líder do antifeminismo, a mulher não tem nenhuma dessemelhança com o homem. Nenhuma? Nenhuma. Nem anatômica? Se ela não faz a ressalva, vamos concluir: — nem anatômica. E essa coisa misteriosa e irresistível que nós chamamos “feminilidade”? A entrevistada tem todas as respostas na ponta da língua, e não precisa nem pensar. Responde: — “A feminilidade não existe”.
A sra. Friedan é um ser todo feito de certezas. Jamais lhe ocorre uma única e escassa dúvida. Eis o que afirma: — a “feminilidade” é uma ilusão, ou uma impostura inventada por uma “sociedade de consumo”. Hoje, não há idiota que, aqui ou em qualquer idioma, não explique com a “sociedade de consumo”, todos os mistérios do céu e da terra. Com a tal “feminilidade” a mulher tem que comprar cílios postiços, maquilagem, vestidos, sapatos, lingerie etc. etc.
Shakespeare, no seu Hamlet diz, pela boca de Horácio, que “há mais coisa entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia”. Mas Shakespeare não conhecia a “sociedade de consumo”, que é, hoje, a chave de todas as dúvidas.
A menina de O Globo não se conteve e disse: — “Pois eu me sinto muito feminina”. Segundo presunção dos presentes, a entrevistada não gostou de ser contestada. Com surda irritação, retrucou: — “Você pensa que é 'feminina', mas não passa de uma vítima da 'sociedade de consumo' “.
E, durante toda a entrevista, a boa sra. Friedan se limitou a fazer variações em torno da idéia fixa: — “A mulher tem que deixar de ser mulher”. E mais: — o homem é o macho perfeito e a mulher o “macho mal-acabado”. O ideal é que, no fim de tudo, tenhamos dois machos.
A nossa menina não se intimidou. Disse mais: — “Pois eu sou boneca, e estou muito satisfeita de ser boneca, e não quero outra coisa, senão ser boneca”. No fim, os colegas e a própria sra. Friedan queriam entrevistar “a boneca”.
A “boneca” voltou para a redação com um divertido horror. E o pior vocês não sabem. Quem está por trás da líder antifeminista? Quem prestigia e aplaude a sua cruzada contra a mulher, contra o casamento e contra a família? Uma série de progressistas da Igreja. Esses elementos a tratam a pires de leite como a uma úlcera.
Mas vejam vocês como vivemos numa época em que tudo se faz e tudo se diz. Há pouco tempo, ninguém teria a coragem de, alçando a fronte, declarar: — “A feminilidade não existe”. Diz mais: — que a mulher para viver dignamente precisa estar acima de “definições sexuais” como “mãe e esposa”. Para a pobre senhora a maternidade é um fato apenas físico, como se a mulher fosse uma gata vadia de telhado. Nem desconfia que sexo, para o ser humano, é amor. Há dez anos, ela não diria isso. E se o dissesse a família trataria de, piedosamente, amarrá-la num pé de mesa; e ela teria que beber água de gatinhas, numa cuia de queijo Palmira. Hoje, porém, pode sair por aí a dizer, pela Europa, América, Oceania etc. etc., afirmando que a mulher é mulher não porque o seja, não porque Deus a fez, não porque a natureza tivesse raspado a sua barba antes de apresentá-la ao homem. A mulher é mulher — afirma a sra. Friedan — porque a “sociedade de consumo” assim o quis. Entendem? Não Deus ou a natureza, mas a “sociedade de consumo”.
Mas e os sacerdotes que estão metidos com a santa senhora e a promovendo? Meu Deus, no mundo em geral e no Brasil em particular só um vendaval de patetas está varrendo tudo. A sra. Friedan só seria viável não numa “sociedade de consumo”, mas num sinistro mundo de idiotas.

In Rodrigues, Nelson. O reacionário: memórias e confissões. São Paulo: Cia das Letras, 1995, p. 192.

Postado por Antonio — São José dos Campos, 24 de Agosto de 2016.

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Quarenta anos

Meu amigo Sérgio lembra que em 1971, de traquinagem, quebrou o farol de um carro estacionado perto da casa dele. O pai soube, deu-lhe uma surra de cinta e o traquina nunca mais fez aquilo. Entrou para a faculdade e hoje é um profissional de sucesso. Em 2011 seu filho fez o mesmo, Sérgio reprisou a surra que levara, mas seu filho o denunciou e ele foi condenado à prestação de serviços comunitários. O filho caiu na droga e hoje está num abrigo para menores. Em 1971, o coleguinha mais moço de Sérgio sofreu uma queda no recreio, a professora deu-lhe um abraço e o menino voltou a brincar. Em 2011, outro menino esfolou-se no pátio da mesma escola, a diretora foi acusada de não cuidar das crianças, saiu na TV e ela renunciou ao magistério e hoje está internada, em depressão.

Em 1971, quando os coleguinhas de Sérgio faziam bagunça na aula, levavam um pito do professor, eram levados à direção e ainda sofriam castigo em casa. E todos se formavam prontos para a vida. Em 2011, a bagunça em sala de aula faz o professor repreendê-los, mas depois pede desculpas, porque os pais foram se queixar de maus-tratos à direção. Hoje fazem bagunça no trânsito e no cinema, incomodando os outros. Em 1971, nas férias, todos saíam felizes, enfiados num Fusca. Depois das férias, todos voltavam a  estudar e a trabalhar mais. Em 2011, a família vai a Miami, volta deprimida e precisa de 15 dias para voltar à normalidade na escola e no trabalho.

Em 1971, quando alguém da família de Sérgio adoecia, ia ao INPS, esperava duas horas, era atendido, tomava o remédio e ficava bom. Saía a correr, pedalar, subir em árvores de novo. Em 2011, os parentes de Sérgio pagam uma fortuna em planos de saúde, fazem exames de toda sorte à procura de câncer de pele, pressão nos olhos, placas nas artérias, glicose, colesterol, mas o que têm é distensão muscular por causa de exageros na academia. Em 1971, o  tio preguiçoso de Sérgio foi flagrado fazendo cera no trabalho. Levou uma reprimenda do chefe na frente de todos e nunca mais relaxou. Em 2011, o cunhado de Sérgio foi flagrado jogando xadrez no computador da empresa, o chefe não gostou e o puniu. O chefe foi acusado de assédio moral, processado, a empresa multada, o cunhado relapso foi indenizado e o chefe demitido.

Em 1971, o irmão mais velho de Sérgio deu uma cantada na colega loira de trabalho. Ela reclamou, fez charminho e aceitou um jantar. Hoje estão casados. Em 2011, um primo de Sergio elogiou as pernas da colega de escritório, foi acusado de assédio sexual, demitido e teve que pagar indenização à mulher das belas pernas, que acabou no psiquiatra. Meu amigo Sérgio me pergunta o que deu em nós, nesses 40 anos,  para nos tornarmos tão idiotas, jogando fora a vida como ela é. Dei a resposta: é a ditadura da hipocrisia imbecil do politicamente correto.

Postado por Antônio - 08 de Agosto de 2016.