BEM-VINDOS À CRÔNICAS, ETC.


Amor é privilégio de maduros / estendidos na mais estreita cama, / que se torna a mais / larga e mais relvosa, / roçando, em cada poro, o céu do corpo. / É isto, amor: o ganho não previsto, / o prêmio subterrâneo e coruscante, / leitura de relâmpago cifrado, /que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre, / salvo o minuto de ouro no relógio / minúsculo, vibrando no crepúsculo. / Amor é o que se aprende no limite, / depois de se arquivar toda a ciência / herdada, ouvida. / Amor começa tarde. (O Amor e seu tempoCarlos Drummond de Andrade)

sábado, 3 de outubro de 2015

Cheguei tarde para amar. Ou: Síndrome de Scarlett


Difícil começar a escrever algo quando não se encontra um fio condutor da conversa, ao mesmo tempo em que a emoção vai aflorando, expelindo pelos poros. Seria fácil, se tudo na vida fosse como ela própria acontece: começo, meio e fim; mas, quase sempre, temos só o meio sem fim nem começo. Então, parto por algum trecho onde a ponta se solta. O amor invisível, obscurecido, adormecido e cego por razões que ele mesmo não sabe. Aquele que não acontece no seu tempo e perde o trem da história. Já passou, amadureceu fora da época de colher e sofre agora seu sumo acre.

Se não houvesse tantos amores intempestivos, o mundo seria um mar de águas calmas com manhãs ensolaradas, porque todos estariam amando na essência, no seu tempo, em sintonia do "amar e ser amado". Nem antes, nem depois, mas no mesmo segundo, como os ponteiros do Big Bang. Menos separações, menos ruínas, tragédias, desarranjos, discussões, com mais entendimento e aconchego na alma.

A sincronicidade — aprendi o seu significado por aí —, ou aquilo que dizem "o universo conspira", é a outra estrada que cruza nosso caminho, por onde surge alguém que não sabemos quem é (por ação divina? Creio.). Só se percebe com a lupa do coração. O que nos envia as pessoas na nossa vida não é só o vento a favor. Há algo, além disso. Não apague a chama que ilumina sua estrada, porque haverá escuridão com solidão lá na frente. Ela pode ser a única luz na sua vida.

Comecei a pensar sobre um tipo de pessoa que ainda existe por aí, que açoita o amor. Lembrei, então, de Scarlett O'hara. E por que lembraria da personagem de um filme da década de 1930 (no apagar das luzes daqueles anos)? É fácil entender aquilo que chamo de "Síndrome de Scarlett", porque identificamos em alguém ou em nós mesmos. Claro, ela é uma figura feminina, mas também poderia ser a de um homem.

A cena final do filme "E o Vento Levou", Rhett Butler, disse à Scarlett: "Frankly, my dear, I don't give a damn". (Francamente, minha querida, eu não dou a mínima...) A frase pronunciada, fora do contexto, pode parecer a de um homem machista, de um pulha. E era a de um machista, como são a maioria dos homens, independente da sua época. Capitão Butler era um homem viril, militar, corajoso, grosseiro e cavalheiro guardião ao mesmo tempo, mas também um grande amante. Ele amou Scarlett até o limite de sua decência. Até onde não se viu um tolo babaca, sob qualquer condição.

Quando ele percebeu que era hora de partir, ele se foi; partiu sem deixar um vestígio na mulher amada, para que ela se suportasse sozinha e se colocasse em seu lugar.  Durante o tempo da conquista e dedicação, ele fez tudo por ela. Livrou-a do perigo da guerra civil, da pobreza, da fome e lhe deu uma família, retomando seu conforto e riqueza. Aceitou não ser amado por ela, aceitou. 

O que fez Scarlett? Ela subjugou o amor, não lhe deu trela, a devida importância. Mirava um amor impossível de outro homem (Ashley), que ela também não amava. Scarlett não amou ninguém; ela só amou seu regozijo. Era infantilizada, mimada, paparicada, entojada (palavra exumada). Desejava todos os homens aos seus pés. Por essas e outras, se casou algumas vezes (três), nunca por amor. Sempre pensando em proteção ou fuga da realidade (a realidade que não vinha da guerra civil). Usava seu charme e beleza para conquistas e o choro nos momentos de  fraqueza e desespero — quando os problemas pareciam insolúveis e a beleza não dava conta. E sempre com os homens sob domínio.
Scarlett e os homens
Rhett Butler a conhecia de longe e chegou a dizer: "por que você insiste em casar com homens que não ama?". Ashley era o homem que ela sonhava, porque, no íntimo, sabia que ele não a queria. Buscava o amor impossível, justamente por que não o teria nunca. Por outro lado, tinha medo de se entregar ao homem que a amava, porque teria que amá-lo na mesma medida; depois, amadurecer, assumir família, se sentir completada e livre por esse amor. Medo, puro medo. E esse homem estava ali, disposto: Rhett Butler. O problema em Scarlett não estava na guerra e nem nas terras da fazenda que perdeu com ela (nunca mais sentirei fome!), mas o amor. Ela não o conhecia.

De 1939 pra cá, o tipo Scarlett não evoluiu. Elas ainda se topam por aí, em cada esquina. Lindas, maravilhosas, sentimentais, frívolas, mimadas e infantis (não quero dizer que tenha que ter todos os adjetivos juntos). Do outro lado, os capitães Butler também continuam a não dar mole a elas. Farpas trocadas e o amor sendo levado ao vento... 

Naquele momento de nevoeiro e despedida, Rhett Butler ainda alfinetou: "Minha querida, você é uma criança. Você acha que dizendo: 'Sinto muito', todo o passado pode ser corrigido. Aqui, pegue o lenço. Nunca, em qualquer crise de sua vida, que eu soubesse, você tinha um lenço". Ele cansou.

A história termina, pelo menos para o público, sem sabermos se Scarlett agora estava dizendo o que realmente sentia (Oh Rhett, do listen to me, I must have loved you for years, only I was such a stupid fool, I didn't know it.) ou se era mais um dos seus truques sentimentais, ao alcance de compaixão e pena. Estaria retirando do seu coração uma pedra que a impedia de dizer do seu amor? Isso não saberemos.

Em muitas ocasiões, por solidão e carência, lembramos de amar as pessoas que já não temos mais, que se desgovernaram por outros estreitos. Não por escolhas, mas por que deixamos ir, lhe demos distância e liberdade achando que um dia voltariam. E não voltam. Quase sempre, nesses casos, o arrependimento é a faca que apunhala no peito, deixando marcas profundas. É precioso amar o quanto antes, quando ainda há tempo e sincronismo. Quando o amor está vivo, pulsante e pode olhar nos olhos. Quando o amor é a nossa casa de acolhida.

Eu sei o que é chegar depois e não encontrar ninguém — quando o trem já partiu. Quem é que nunca se arrependeu de um amor que escapou por entre os dedos? Aquele que viu passar, como um cometa que se desintegrou na escuridão do universo.

O amor chegou tarde quando eu estava de malas prontas e partia para outra estação. Cheguei tarde para amar e não havia mais nada de nós ali. Só uma poça d'água; só um resto de você.

(You think that by saying, 'I'm sorry', all the past can be corrected. Very difficult to believe now...)

E.T: Fui alertado por uma postagem no Facebook — talvez seja a palavra que não encontrei — sobre a palavra que mais define Scarlett: Histriônica. Ela queria ser o centro de todas as atenções, mais relevante que a própria guerra que passava na sua janela e sobre sua vida. Nunca mais esquecerei: HISTRIÔNICA.

© Antônio de Oliveira / arquiteto, urbanista e cronista / Outubro de 2015