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sexta-feira, 24 de abril de 2015

O fim da infância


Quando a AIDS surgiu no mundo, acendeu um sinal de alerta na cabeça das pessoas: era preciso pôr um freio em certos comportamentos, como assim dizer, além das fronteiras da normalidade da vida. A doença  do comportamento veio para estancar um estado de libertinagem, de sexo sem cuidados e o uso indiscriminado de drogas injetáveis. Tudo só para o meu prazer (sem consequências). Quando acordaram, descobriram, sim, que haviam consequências. E graves.

É possível ver ali pelo final dos anos 1980, artistas, políticos, e todo meio jornalístico falando no assunto, com muito espanto e olhar de assombro. E todo mundo se fechando mais dentro dos seus relacionamentos, das suas casas, suas vidas, da família e deixando de frequentar grupos de drogados, garotas de programas e festas de orgia. O medo da doença tomou conta do cotidiano. Em pouco tempo, ela saía dos grupos de risco e já se espalhava em outros ambientes comuns. Daquela época para os dias de hoje, o que não mudou, foi: AIDS mata!

A chegada de coquetéis de controle da doença veio como um alento às pessoas que ainda se permitiam viver perigosamente, trocando parceiros e seringas: por ofício ou por prazer. Junto com essa sensação de alívio, aplacou-se um relaxamento, retornando os velhos hábitos de se transar sem preservativos, de transar muitos com muitos; depois o uso de seringas compartilhadas em ambientes de viciados. Conclusão, o simples fato de haver um remédio de protelação da vida, fez com que todo mundo esquecesse e regredisse, imaginando que estava tudo bem e a tormenta havia passado.

Quando imaginávamos que aquele freio psicológico havia sido entendido pela sociedade — pessoas e o sangue em suas veias são transportes de doenças —, que as famílias iriam ser resgatadas, que as drogas iriam sumir, tudo volta com outra feição. Não é preciso dizer que a AIDS voltou ameaçar a sociedade e principalmente no Brasil. Nos hemocentros ainda se têm todo um cuidado, mas o comportamento das pessoas nas ruas, não. E hoje, o grupo onde ela mais aparece, continua sendo os novos homossexuais. Jovens que não viveram aquele período do medo. Eles desconhecem o perigo e se arriscam.

E por que essa longa introdução? Para dizer que estamos perdendo a percepção das coisas, do tato, do olhar sobre o mundo que habitamos; estamos perdendo o jeito de viver a vida com os cuidados que ela exige. Estamos numa era da permissividade, do abuso inconsequente (com ou sem camisinha). Viva a liberdade de ser o que quer e da forma que quiser (muito além da revolução cultural dos anos de 1960). Se for criança ou adulto, não há regra que separe as gerações daquilo que, por liberdade e escolha, lhe é permitido fazer. Hoje, os contaminados do HIV já não se escondem, com vergonha e medo, como na década de 1980. Eles agora espalham a doença em seringas contaminadas dentro de coletivos, como ocorreu no nordeste do país.

Também hoje, as poucas pessoas mais esclarecidas estão pensando muito em pôr filhos no mundo, sem antes preparar o mundo para eles. (Eles sentem esse termômetro de um mundo infectado de outros males). Outros, porém, acham que terão seus filhos eternamente debaixo de suas asas, e eles estarão imunes aos contágios que a vida lhes trouxer. Ledo engano. Falo isso, porque lembrei de um colega de trabalho que, antes da filha nascer, já dizia em qual colégio ela iria estudar, pensando em livrá-la de ambientes nocivos. Só esqueceu que ela um dia vai sair de lá. Que esse seu lado protetor não depende dele. Uma hora o mundo irá se encarregar de cuidar do seu rebento. 

Um jovem funkeiro expõe sua filha de 08 anos à erotização em shows, vídeos e fotos nas redes sociais. Ela tem um codinome de MC Melody. Um professor universitário esquerdista escreve em seu Blog um texto asqueroso e canalha fazendo defesa da pedofilia — gente progressista. Um político conhecido defende que crianças com 12 anos possam decidir mudança do seu sexo, mas, incoerentemente, se diz contra  a redução da maioridade penal para 16 anos. Nas escolas, o ensino do beabá (matemática, português, ciências), como tem que ser, foi substituído por um ensino de "consciência política" voltada ao marxismo. Quase o fim...

O pai dessa garota erotizada aos 8 anos disse, numa entrevista, que ele sabe muito bem o que faz: ela estuda e isso [dançar erotizando] é só um trabalho... Em outro vídeo ele mostra um colar no pescoço e diz que custa vinte e cinco mil reais, e que são poucos os que podem ter um, quase esfregando na câmera. Sua filha é só um produto do seu intento: o gosto pela ostentação, sem medir consequências do que possa estar acima do bem e do mal.

O que reina nesse nosso novo mundo é a ostentação de riquezas, ter poder e dinheiro. Mesmo que você não possua nenhuma das três coisas. E você não precisa ter cultura ou berço para tê-los. Irá atrás, nem que para isso sua filha fique exposta como carne numa vitrine, ou como uma manequim de roupa nova a ser devorada por gulosos e por quem quer que seja. Vale tudo pela ostentação e poder.

A erotização infantil vem de encontro com uma outra nova tendência dessa "engenharia social": a pedofilia como doença. Já existem pensadores (do mal) pregando que é preciso olhar com outros olhos um pedófilo. Há trinta anos não imaginaríamos que estaríamos hoje vendo casais homossexuais desfilando em novelas, como se isso fosse a coisa mais corriqueira em nossas vidas. Não é! Eles existiam no anonimato, mas agora virou voz a ser ouvida, e sob o seu pensar se aniquila uma sociedade predominantemente heterossexual. Ser respeitado não quer dizer que devamos seguir e compartilhar. No fim, somos todos sopros divinos com acertos e erros, e nada mais. Mas o que vem daqui em diante é a figura do pedófilo, como protagonista de alguma trama na nossa vida. E todos nós iremos aplaudir isso num futuro, não muito distante. Relativismo cultural.

Quando completei 11 anos (já pré-adolescente), eu lembro que ainda conservava muito a infância. Meu amiguinho de escola, que morava alguns quarteirões da minha casa, me chamou para brincar de carrinho (miniaturas de automóveis). Fui a pé e sozinho. Ele morava numa casa que ficava no fundo de um terreno íngreme, com a parte toda da frente arborizada e livre para brincar. E seus novos carrinhos passavam de mão em mão no chão de terra. E naquele momento, a indagação veio na nossa cabeça: já temos 11 anos e ainda brincamos de carrinho? Foi a última vez que brinquei. Hoje as crianças perdem o gosto por brinquedos, como esses, já nos primeiros anos de vida.

O artigo anterior, do escritor Contardo Calligaris, fala dessa infância, e me inspirou a escrever sobre esse outro lado dela; esse lado obscuro e empalado. Ele focou na disputa dos pais divorciados pelo amor dos filhos "repartidos". Com um, ele tem a permissão; com outro, a proibição. Com quem eu aprendo? — deve perguntar a criança. Ele fala de um problema, mas a coisa é pior que a simples divisão de amor entre pais separados. No extremismo, iremos desaguar nos casos daqueles que não dão a mínima, e sequer se preocupam com o que seu filho faz ou deixa de fazer.

Só posso dizer uma coisa: estão acabando com a infância; estão acabando com o ser humano que habitará o planeta nos próximos séculos. E o mundo vai vivendo esse estado febril, letárgico e inconsciente; com todos achando que está tudo sob controle, assim como a AIDS aparenta estar. Todo mundo finge e acha que pode se curar ou curar as vidas de seus rebentos, quando bem entender. Ou, simplesmente, ignorar tudo por completo e curtir sem limites para viver (com ostentação). Essa é uma doença moral em estágio avançado. Será que haverá remédio e cura a longo prazo?

Toda vez que vejo alguém festejando o nascimento de um filho, neto, ou qualquer parente, eu já penso no futuro daquele serzinho. Vejo aquela criatura ainda indefesa, diante de um mundo remendado, vazio de valores. E isso me dói. Será que ele verá, no seu mundo, um amanhã que valerá a pena ter nascido e viver? Deus esteja no comando! 


© Antônio de Oliveira / cronista, arquiteto e urbanista / Abril de 2015

quinta-feira, 23 de abril de 2015

O novo abuso de criança

Contardo Galligaris

Desde o fim do século 18 (pouco mais de 200 anos), nossa cultura idealiza a infância. Pretendemos que seja uma época especial e maravilhosa da vida, ou seja, queremos que as crianças mostrem para a gente que elas estão "felizes", despreocupadas, lépidas e faceiras.
As crianças, até então, eram que nem adultos –só que, infelizmente, ainda pequenos e incompletos. Seu maior, se não único, dever não era se divertir, mas crescer quanto mais rápido possível.
Graças a essa mudança cultural, as crianças ganharam cuidados e proteção (por exemplo, elas não puderam mais trabalhar como os aprendizes da era pré-moderna), mas também perderam autonomia e, literalmente, elas se infantilizaram: tornaram-se entediantes, para nós e para elas mesmas.
Nas últimas décadas do século passado, a idealização da infância se tornou mais forte e mais perniciosa do que nunca. Sobretudo a partir dos anos 70, os adultos parecem invejar e imitar as crianças, enquanto as crianças, em vez de sentirem-se encorajadas a crescer, sentem-se instigadas a permanecer para sempre como caricaturas de si mesmas. O que aconteceu?
Só encontro uma explicação razoável: no fim do século passado, em muitos países do mundo ocidental, tornou-se possível e relativamente fácil se divorciar.
Hoje, nos EUA, calcula-se que 50% dos casamentos terminem em divórcio (41% dos primeiros casamentos, e 60% dos segundos). Desses 50% de casais divorciados, 40% têm filhos.
Consequência, a partir dos anos 70, surgiu um tipo de afeto inédito até então: a competição dos pais divorciados pelo amor dos filhos. Fazer a "felicidade" dos filhos, além de ser o "dever" cultural de todos, passou a ser também o jeito para ser "preferido" ao outro cônjuge.
De repente, um dos pais manda os filhos escovar os dentes e passar fio dental, enquanto, na casa do outro, eles comem chocolate antes de dormir. Um dos pais verifica que os filhos tenham feito o dever de casa; o outro os leva de férias no meio do ano escolar porque quer ver os filhos se divertirem.
Enfim, incapazes de manter um projeto comum de educação, rivalizando pelo amor dos filhos, muitos pais divorciados só tentam seduzir os rebentos. Sua mãe cuida de sua alimentação? Vem para cá, que a gente come só porcaria, o dia inteiro. Sua mãe verifica que você leia? Vem para cá, que a gente só passeia no shopping.
A criança que deveria ser educada foi substituída pela criança que deve ser seduzida –à força de promessas, concessões, permissivismo e, em última instância, pela desistência educativa dos pais.
Aparentemente, essa nova figura, a da criança que precisa ser seduzida, ganhou a preferência dos pais, divorciados ou não. Terminou o tempo em que a criança se esforçava para ganhar a apreciação dos adultos, e começou o tempo em que os adultos se esforçam para ganhar o amor das crianças. Sumiu assim o incentivo para a criança crescer, enquanto "voltar a ser criança" parece ser o grande desejo dos adultos de férias.
Nasceu assim um novo tipo de abuso, muito mais grave do que a palmatória do passado: um abuso psíquico, no qual o que os adultos oferecem como perspectiva para a vida de uma criança é a própria infância.
Respondendo a alguns leitores, sobre a coluna da semana passada, que tratava da maioridade penal:
1) Acredito, sim, que as crianças deveriam ganhar de volta sua responsabilidade penal. Não é preciso estipular a partir de que idade: cada caso é um caso. Um júri ou um juiz podem decidir quem é imputável e quando.
Um leitor, Luciano Godoi, me mandou uma notícia recente: a Polícia Militar de Cascavel, Paraná, apreendeu dois adolescentes suspeitos de tentarem assassinar os seus pais. Os irmãos, de 14 e 17 anos, acrescentavam o veneno à comida dos pais; parece que eles queriam mais liberdade para sair e achavam que, uma vez órfãos, morando com os avós, eles a teriam. Minha posição seria: que um juiz ou um júri decidam se o menino de 17 e a menina de 14 devem ser julgados como adultos ou não.
2) A ideia de que a redução da maioridade penal seja um instrumento de dominação de classe é um estranho disparate. Alguém acredita que a delinquência seja um efeito da pobreza? Parece coisa de romance ruim do século 19, em que a miséria acarretaria degenerescência moral.
As catástrofes morais não têm a ver com a pobreza; elas têm a ver com os ideais que nós mesmos promovemos, como o da infância, se não da infantilidade. 

CONTARDO CALLIGARISItaliano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor.
(Texto original Jornal Folha de São Paulo — 23/Abril/2015) 

Postado por Antônio de Oliveira / cronista, arquiteto e urbanista / Abril de 2015

sexta-feira, 17 de abril de 2015

O pulo do sapo



"O sapo não pula por boniteza, mas por precisão", já dizia Guimarães Rosa.

Estou numa fase da vida que não posso dar um passo sem ter que consultar minha dieta alimentar, ou melhor, reeducação alimentar. Tudo ainda num momento de adaptação. A idade vem e junto agravam ou aparecem as doenças. Principalmente aquelas invisíveis.

Para tanto, tenho dedicado parte da minha vida a uma alimentação mais saudável e outra ao exercício físico. Não adoro nem uma nem outra coisa. Faço por necessidade mesmo. Como barrinhas de cereais e castanhas do Pará sem paladar, mascando sem prazer. Vou bocejando e com preguiça para academia, pensando na cama, na TV, no livro, na crônica e na canja de galinha quentinha. Tenho preguiça até de atravessar a rua.

Quando chego, é claro que esqueço tudo e suo um bocado. Enquanto a aula não começa, fico me aquecendo nas pedaladas e olhando o entra e sai de pessoas. Em lugar de muita gente, não tem como não reparar. Quando vem a pergunta: o que quer essa gente? Será que é por precisão ou por boniteza, mesmo?

Enxergo mais longe que isso: o mundo virou um fashion day, uma passarela de anônimos em culto ao ego e ao corpo. Só perceber os selfies nas redes sociais, totalmente exibicionistas. Todo mundo (homem e mulher) quer ser lindo e ser invejado por outro menos lindo que ele. E muito menos não quer pensar em morte, achando que ela nunca chegará; todo mundo quer a fonte da juventude, com felicidade plena e eterna. E por isso nunca se pedalou tanto as bikes, nunca se fez tanto running e musculação. Aquilo que a gente via nas corridas de São Silvestre, uma vez por ano, passou a ser corriqueiro nas ruas da cidade. Todo mundo resolveu correr: ignorantes, inteligentes, empresários, motoboys, comerciantes, pobres e ricos. Virou moda ter saúde. Se você ainda fuma, não pense em fumar perto de gente assim. Você terá aulas de saúde com o dedo apontado.

Depois, indo para um ambiente mais radical, irá deparar com um vegetariano ou um vegano (não conhecia até pouco tempo essa palavra). Esses são mais chatos ainda. Há uma postagem no Facebook de uma mulher se gozando toda — há um vídeo junto à postagem —, porque sua filha, que gosta só de vacas no pasto, está cantando Milton Nascimento para uma plateia de vaquinhas no alto de um morro. É claro que ela acha que as vacas estão ali só porque sua filha é vegetariana e jamais comeria suas carnes. Ela deve pensar também que, eu e qualquer outro carnívoro que resolvesse cantar para as vaquinhas, elas não dariam a mínima atenção. E pior, tem gente que crê nisso.

Mas voltando à moda. É só perceber a quantidade de academias que se espalham nas cidades. Agora tem as ao ar livre, colocadas em praças públicas e na praia. Ninguém pode dizer que não faz exercício, por falta de dinheiro. É de graça, está na rua. Depois, outra coisa que surgiu é o tal de personal. Se você quer um educador físico só para você, que te atenda dentro do seu tempo, você pode contratar um.

Acesse a internet e encontrará inúmeros canais no YouTube com aulas de todos os tipos, para o aeróbico, para perder barriga e para formar os músculos. Também na internet irá deparar com as vendas de suplementos alimentares para quem pratica esporte. Na rua, lojas especializadas em corridas e bikes também estão em cada canto da cidade, vendendo todo tipo de equipamento e acessório.

Reflito: cada vez que as pessoas não acordam, ou demoram acordar para a realidade, porque estão só preocupadas com seu bem estar — o egoísmo e o individualismo são quase sinônimos —, os inimigos do mundo avançam, dão um passo a mais na sua destruição. Porque olhar para o abdômen sarado é um prazer, melhor que olhar o jornal e ver a corrupção corroendo as estruturas da nossa frágil democracia; já num estágio avançado de exportação de "profissionais" da área. Menos abdômen e mais livros, por favor!

Mas toda essa minha narrativa é para perguntar, aquilo que me veio enquanto pedalava na academia: o que querem essas pessoas para suas vidas? Eu tenho preguiça, como já disse, e sei que o exercício físico é por precisão e necessidade, mas acho que muitos ainda procuram e estão atrás de si mesmo: dentro do seu corpo, do seu músculo, do seu tônus. Eu estou em algum lugar de mim, onde? — procuram. As pessoas de hoje não sabem envelhecer, não querem a velhice. E se enganam olhando no espelho, de corpo inteiro.

Afirmo isso, porque outro dia conversando com uma esteticista — outra profissional dos novos tempos —, ela me contou que, numa clínica onde trabalhava, era corriqueiro o uso de botox em mulheres acima dos 50 anos. A qualquer sinal de linhas no rosto, elas corriam lá para corrigir. E aquele rosto ia ficando deformado de tanta aplicação. Hoje, o silicone e as aplicações de corretivos já ultrapassaram os limites da simples necessidade e entrou para o campo do exagero e do bizarro. Para muitos virou meio de retenção do tempo, como uma forma de "se amar".

Guardei as palavras. Minha antiga terapeuta me disse uma vez: cuide do corpo, da alma e da mente. Não adianta você focar só numa coisa, enquanto as outras duas partes estão doentes.

Quando eu era criança, e brincava no quintal da minha avó, eu tomava água numa talha de cerâmica que ficava sobre a pia. Com o rosto suado e salpicado de sardas, eu pegava a caneca  de alumínio e tentava alcançar a água — era alto para minha estatura. E quando não dava, subia na cadeira. Aquela água vinha da torneira, que vinha do cano galvanizado (enferrujado?) da rua, que vinha da estação de tratamento e sem nenhum filtro. Tomava por sede, porque ninguém se importava se continha germes ou bactérias. A evolução naquela época era o filtro de barro vermelho. Na minha e na casa da minha avó chegou alguns anos depois.

Hoje, até a água que tomamos deve vir em galões de fontes de águas cristalinas, em nome da saúde e de evitar doenças. Todo empresário empreendedor, que analisa mercado, entende isso perfeitamente: venda saúde, não venda cigarros mais! Ele está certo.

Com tudo isso, estamos cercando demais a vida do seu previsível fim e esquecendo de que ele é certo. Esquecendo de se saber, de se ver na alma; esquecendo de ser de verdade consigo e com os outros. Aprender a envelhecer é uma arte e deve ter seus cuidados e prazer. Pena que a maioria das pessoas por aí estão vazias de conhecimentos e verdades, mas cheias de botox no rosto. Vão chegar ao fim da vida não frequentando mais uma clínica de estética ou academia, mas um consultório de psicanálise: minha vida está acabando e ficando sem sentido, o que fiz durante os anos que vivi? A alma estará, assim como o corpo, em frangalhos.

© Antônio de Oliveira / cronista, arquiteto e urbanista / Abril de 2015

segunda-feira, 13 de abril de 2015

O velho petista



Todo petista, que passou dos 50 anos de idade, é como aquele cara que, na sua infância, seus pais sustentaram a tese que papai Noel existia. Era o bom velhinho quem lhe trazia presente. E, assim, todo Natal seu pai colocava o presente debaixo da árvore, quando ele não estava, e depois dizia: "olha o que papai Noel trouxe!".

Veio a adolescência e seus pais não tiveram a coragem de contar-lhe a verdade: papai Noel era um conto de Natal, uma utopia. Chegou a maioridade e vieram as primeiras revelações e a verdade por meio de outras pessoas, de que o bom velhinho era uma fantasia, uma mentirinha que todos os pais contam para os filhos. Ele teimava, e não aceitava, continuando acreditar: "papai Noel existe, sim!, eu acredito, e meus pais jamais iriam mentir pra mim".

Hoje, com 50 anos, mesmo sabendo que seus filhos já nasceram descrentes desse conto — consultam o Google —, todos os anos, no Natal, ele finge não ver sua mulher colocar seu presente debaixo da árvore. Com medo de que seus sonhos sejam sufocados pela dura realidade, ele rejeita qualquer argumento que desnude sua crença pueril. Ele continua fiel à história da sua velha infância. Pressente que o medo da dor da verdade possa ser maior, e pode lhe ferir mais do que a própria verdade pujante e aceita. O medo da dor da verdade só revela, mesmo, a sua própria covardia.

PAPAI NOEL É SUA MULHER, CARALHO!
QUANDO É QUE VOCÊ VAI ACEITAR ISSO?!

© Antônio de Oliveira / cronista, arquiteto e urbanista / Abril de 2015.

sábado, 4 de abril de 2015

Onde a felicidade começa



Graças ao meu irmão, estou vendo de novo a série "Columbo", com o excelente Peter Falk. Grande sucesso na TV americana a partir do final dos anos 1960. Columbo é um detetive desengonçado e divertidíssimo. Nem Agatha Christie pensaria as formas mirabolantes como ele desvenda os crimes. O que chama atenção em Columbo é seu jeito de parecer que está só batendo papo, enquanto trabalha, investiga. Despretensioso, irônico, astuto, só esperando o momento certo para o bote; uma serpente prestes abocanhar sua presa a qualquer momento. Quando o suspeito sente o fungar em seu cangote, ele dispara: "eu estou só juntando as pontas, é do meu trabalho". Desvendar crimes é juntar pontas de uma historia mal contada; montar um quebra-cabeça. Ele faz isso com perfeição.

Mas o meu assunto aqui é outro. Sempre quando vem à tona a questão da felicidade, fico tentando juntar as pontas soltas também. Já escrevi em outras crônicas, mas vira e mexe volta com uma interrogação enorme, de pontas desconexas de fios desencapados. Por que tanta dedicação ao assunto? Por que tanta gente atrás da felicidade? E depois essa coisa óbvia, que ela está dentro de nós (clichê de livro de autoajuda). Isso, por si só, não justifica ou explica a felicidade, ou a sua ausência. Onde ela começa?

Deparei com uma postagem do Professor Olavo de Carvalho no Facebook, onde ele enaltece o porquê do povo americano ser o que é. (Ele mora lá há 10 anos). Sem tirar nem pôr: tem altivez, anda de cabeça erguida, tem compaixão, e felicidade fácil... Eu compreendo, eles não veem a vida sob o olhar malicioso, desconfiado, tão costumeiro a nós brasileiros. Eles levam a sério a vida, por que há seriedade no seu dia a dia; assim a felicidade fica parecendo ser uma coisa normal e corriqueira.  Olavo ainda concluiu: quando eles veem em você o mínimo de coisa, que não seriam capazes de executar, dizem: "I am so proud of you".

A felicidade é um estado de ser, está no íntimo. Não há dúvida. Mas as suas causas são, sim, exteriorizadas. O que nos põe em contato com ela é o ambiente, ou poderia dizer, o que conspira e reina em torno à vida. Depois de ler "Foi nos EUA que pela primeira vez aprendi que a felicidade é normal", interpretei:
A felicidade não está no outro. Ela surge no acaso da vida, cotidianamente. Quando tudo que nos cerca é bom, liberto, verdadeiro, acolhedor, seguro e confiável. Não está entre quatro paredes, mas numa dimensão de nação. Numa atmosfera de prazer e esplendor. Vivemos num país onde as pessoas vivem buscando felicidade o tempo todo (?). O brasileiro tem síndrome da felicidade ausente, e por isso vive convergido no "vou ser feliz quando...". Esse "quando" nunca chega. Porque, o simples fato de ser normal, faz parecer tão distante, inatingível pelo próprio esforço. Isso (estado de bem-estar) tem a ver com esse mundo de fronteiras que nos cria e suas leis que nos governam. A política, a lealdade, a compaixão; depois o acesso ao trabalho, ao emprego, ao lazer, à moradia, à educação, à cultura; tudo junto e com respeito mútuo e cidadão. Longe ela está, mesmo, do mero encontro com o ser amado. A felicidade está na justiça.
Alguns leitores entenderam e outros não. Eu diria que, a maioria leu só a primeira linha, o óbvio ululante. É uma coisa nossa, brasileira, porque, de fato, temos pouco contato diário com o bem-estar coletivo. Ele se cria no mesmo instante que se desmancha. Há ainda o conceito, na forma egoísta, que felicidade só basta estar com alguém que gostamos numa cabana e acabou. Dane-se se o mundo está ou não em guerra, ou se há contas para pagar. Desde que eu esteja aconchegado, com o amor da vida, pode o mundo acabar.

Não é bem isso. A explicação está no comportamento, especialmente, de nós brasileiros: sempre carente clamando pela felicidade ausente, como um objeto de desejo. Então, pense comigo: o povo brasileiro é apaixonado por futebol e carnaval. Tudo que o faz viver momentos de felicidade instantânea como insights, quando somente assiste, sem participar (deleitar), porque a vida depois é dura, difícil e injusta. Por isso o carnaval, o futebol e outras diversões coletivas ganham proporções maiores que o simples lazer. Tomando o espaço que seria da convivência familiar: na rua, no trabalho, na escola, na vida, no encontro diário. O dia seguinte é uma ressaca moral de injustiça, dureza, dificuldades, falta de dinheiro e falta de perceptivas. A síndrome da quarta-feira de cinzas.

A felicidade deveria ser cotidiana e normal. Agora, quem é que sente isso morando num país inseguro, injusto, cercado por desigualdades, malandragem, corrupção e desgoverno? E tudo que, direta ou indiretamente, nos fere na alma, na honra. Essa atmosfera que nos faz sentir bem com tudo; essa atmosfera que nos coloca em contato com o self e o Criador; onde todos se somam, independente do seu poder aquisitivo e nível social; uma atmosfera de pessoas inteiras e verdadeiras. Onde está?

Poderia me fechar nesse egoísmo e dizer: se está bem para mim, que se dane o resto. Ao contrário, penso: se estiver bem para todo mundo eu também serei atingido pelo mesmo sentimento. Não dá para ser feliz sozinho (já disse o poeta), porque a felicidade não se sustentará por muito tempo entre quatro paredes. A felicidade não se sustenta, quando aguardamos um filho chegar tarde da noite da faculdade ou de uma balada. Aperto no peito, aflição, insegurança: isso não é felicidade. O bem-estar cotidiano deveria ser contagiante e duradouro. Isto é, felicidade sem medo.

Não quero pregar aqui essa coisa de mundo melhor com igualdade, de catequese socialista. (Pregam o que não vivem). Nenhum ser humano é igual ao outro. Se todos forem chefes, quem serão os empregados? É preciso que todos se sintam felizes dentro de suas posses e condições. Se há o empreendedor, deverá haver quem o ajude a empreender. Não existe empregado sem patrão, como querem. Para isso há que se ter justiça reinando em tudo que se faça. Não ostentar posses e coisas, mas o bem-estar. Com respeito e admiração e não com inveja.

Quem é que não fica feliz ao ver a justiça acontecendo? Só não fica quem anda à margem da lei, na criminalidade, na contravenção do mundo. Porque a maioria das pessoas (que trabalha, paga impostos e se sustenta) pensa como eu. Eu não quero ser feliz sozinho, mesmo porque não teria com quem partilhar.

Poderia citar mil coisas aqui que nos faz feliz e não depende só de nós, mas de quem cuida da nossa vida, por governo. Então, fui ler a etimologia da palavra "governo", encontrei: "Do L. GUBERNATOR, 'diretor, líder, governador', originalmente 'timoneiro', do Grego KYBERNAN, 'pilotar ou ir ao leme de um navio, dirigir', palavra que originou nossa 'cibernética'”. Enquanto tocamos nossa vida cotidianamente, alguém dirige o leme da embarcação que é a cidade, o país, a nação, enfim, o governo. Quando ele é um bom timoneiro, nos sentimos seguros dentro da embarcação; não nos preocupamos com icebergs e maremotos. Confiamos que estamos sendo bem guiados. Isso nos dá segurança de viver; isso nos dá conforto; isso nos dá prazer; isso nos traz também felicidade.

Lá do outro lado do mundo ou aqui mais próximo, não dá para ser feliz vendo injustiça e miséria.

Olhando para o país nesse exato momento, vejo o brasileiro, forçadamente (não espontâneo), começando a tomar sentido de si. Depois de perceber os alicerces da nossa democracia sendo abalados por um governo para lá de corrupto; depois de não enxergar um país justo para suas gerações futuras, começou a reagir.

O primeiro estágio é do reconhecimento, que muita coisa vai mal, e é preciso se mexer. Reconhecer que Lula, por exemplo, não passa de um farsante, um vigarista abjeto. Agora, só isso também não basta; ou dizer "ladrão!", da boca para fora nas redes sociais, e no íntimo ainda continuar cultivando a inveja da sua malandragem. Lembrando que, até pouco tempo, Eike Batista tinha milhares de seguidores da sua fortuna, por inspiração e por inveja.

No íntimo, o brasileiro ainda gosta e inveja a malandragem alheia; aquele sujeito que se deu bem, não importa os meios — lei de Gerson. Se tivesse a oportunidade, e poder, faria o mesmo. É preciso agora — estamos caminhando para isso —, com o reconhecimento, mudar essa mentalidade. Mudar o sentido do leme, a forma de pensar a vida; olhar para o mar revolto tomando à frente e pôr o país de volta no rumo, navegando em águas calmas, sob ética e moral. Felicidade é possível, sim, na sua amplitude e com justiça.

Por enquanto, como sempre age o personagem de Peter Falk, estamos ainda juntando as pontas de nossa identidade perdida, para se encontrar de novo, quiçá, num país mais civilizado e melhor. Eu queria mesmo é que todas as pontas já tivessem juntadas e muito bem atadas, mas isso irá demorar...

Por fim, pegando pelo avesso dessa conversa, existe um porquê da pescaria marítima em Cuba ser proibida pelo governo. Você pode perguntar: eles não gostam de peixe de mar ou pensam na preservação de alguma espécie? Não, nada disso. Simplesmente, porque embarcações mar adentro são um convite à fuga fácil da ilha/prisão. E isso é um caminho sem volta no mar: o anseio esperançoso de um povo triste e oprimido ao encontro de terras onde há liberdade e, quem sabe, um derrame de felicidade.

© Antônio de Oliveira / cronista, arquiteto e urbanista / Abril de 2015.