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segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Síndrome d. Hélder

Abandono nas obras da transposição do rio São Francisco

Recordei-me agora da revista semanária Seleções Redear's Digest. Elas foram as minhas primeiras leituras já na pré-adolescência. Não lembro de publicação tão antiga e que ainda mantém o mesma estampa: tamanho, seções, capa, etc. Segundo minhas consultas, desde 1922. Lá se vão quase 100 anos nos jornaleiros do mundo todo.

Faz algum tempo estava na casa de um amigo que tinha muitas delas, era um colecionador assinante; havia  edições antes mesmo de eu nascer. Coisa assim do final da década de 1950. Curiosamente, passei uma tarde folheando, vendo principalmente os anúncios de xarope e eletrodomésticos.

Ah, os eletrodomésticos, fez-me lembrar de uma matéria que mostrava como seriam os eletrodomésticos do futuro. Claro, dei muita risada como as pessoas daquela época viam o nosso futuro (presente). O que me chamou atenção, veio à mente agora, foi o aspirador de pó que você coletava o pó numa tubulação na parede. E isso já existe, porque que já vi.

Mas o que fez-me aqui folhear a famosa revista foi mesmo uma piada. Havia — creio que ainda há — uma seção que se chamava "piadas de caserna". Eram piadas inteligentes, que eu sempre lia e decorava para contar ali na esquina. Mas uma ficou marcada, pois, o fato, tinha lá sua graça, nos levava a refletir. Piada inteligente.

Um velho médico oncologista se aposenta e seu filho, seguindo o mesmo ramo, herda seu consultório. Já nos primeiros dias de trabalho (ou meses), o novo médico chega em casa todo contente; e o pai quer saber de toda sua euforia. Foi quando ele diz: "Lembra daquela senhora gorda sua paciente, que tinha um câncer que parecia incurável, sofria há anos com aquilo? O pai: "Sim, eu sei qual é. Ela morreu?" O filho: "Não pai! Eu a curei. Ela está sem nenhum câncer". Onde o pai arremata: "Você fez bem meu filho, mas fique agradecido a ela. Seu tratamento foi o que pagou a sua faculdade...".

Volto ao terreno baldio de Nelson Rodrigues. Lá onde as verdades, ao espio da cabra vadia, eram arrancadas a ferro quente, como numa sessão de tortura, ao velho estilo dos chamados anos de chumbo. A figura e a síndrome d. Hélder se espalhou também no Brasil, agora "livre e democrático". Ela não vai acabar, enquanto houver pobreza e o discurso de mundo melhor. A sanha política só aumentou; e pouco ou quase nada se avançou na luta pela diminuição da pobreza e a seca nordestina. Há disfarces, truques, discursos, maquiagens aos quilos; e agora com assistencialismo embutido. Ninguém quer curar doença nenhuma.

Não é de hoje que a pobreza tem sido usada como embuste, sustentação, canal (sem trocadilho) para o establisment político. Se discursam nas campanhas a mesma ladainha e depois de eleitos dão as costas à causa. Falar da seca no nordeste é catequese, mas pôr a mão na massa ninguém irá fazer, porque sujam e calejam as mãos, e não terá mais a árvore para colher os frutos de promessas futuras. É fato, se o povo brasileiro tivesse um desnível social menos íngreme, muitos dos políticos que aí estão não teriam mais tanto espaço para cargos eletivos.

A seca do nordeste é remota. As obras de transposição do rio São Francisco, que poderiam diminuir a carência, manter a produtividade e as condições humanas na região, são, ademais, peças publicitárias, vídeos ilustrativos (parecendo real) de uma obra de arte invejada pelo melhor painter. Como no velho chavão: "falta a vontade política para tantas carências". Político não gosta de solucionar os problemas da população, porque são esses problemas que o sustentam por anos em seus mandatos. A síndrome d. Hélder.

E d. Hélder Câmara? A esquerda sempre se curvou a ele, uma coisa meio assim disfarçada de "luta" pelos pobres, TdaL, discurso manso, que dá preguiça de falar... Nelson Rodrigues desmascarava e ria da cara de cada um dos revolucionários e padres de passeatas daquela época; desses contempladores do crepúsculo de maio de 1968 (nenhuma maria antonieta foi decapitada e nenhuma bastilha caiu). Dirão: "foi uma revolução cultural". De fato, nada trouxe de significativo para os nossos dias, senão a retórica, porque nada tinha para apresentar de novo. Não havia uma agenda de mundo.

Por um acaso, li com certo atraso, a entrevista que o filósofo inglês Roger Scruton concedeu à semanária Revista Veja, em setembro de 2011. Disse Scruton: "Eu acordei do meu delírio socialista durante os tumultos de maio de 1968, em Paris. No meio da destruição, das barricadas e das janelas quebradas, percebi que aqueles estudantes estavam intoxicados pelo simples desejo de destruir coisas e ideias, sem a mínima preocupação em colocar algo relevante no lugar. Foi difícil aceitar que meu futuro era me tornar um pária intelectual em meio à maioria esmagadora de esquerdistas." Em outro trecho, ele arremata: "É uma tradição esquerdista, que vem desde o século XIX e de Karl Marx, em particular. Consiste em julgar toda forma de sucesso humano a partir do fracasso dos outros. Com base nisso, engendrar um plano de salvação para os mais fracos. Esse é um dos motivos pelos quais os movimentos de esquerda continuam a fazer sucesso. Eles sempre oferecem uma causa justificável e uma vítima a ser resgatada. No século XIX, a esquerda pretendia salvar os proletários. Nos anos 60, a juventude. Depois, vieram as mulheres e, por último, os animais. Agora, eles pretendem resgatar o planeta, a maior de todas as vítimas que encontraram para justificar seus atos."

Voltando aos problemas da seca e as intermináveis promessas. Em novembro de 2013, o jornalista blogueiro Augusto Nunes escreveu em seu blog: "Os habitantes do país real ainda não conseguem enxergar a olho nu um único e escasso canal semelhante ao que aparece no vídeo provando que o sertão já virou mar. (Um mar de primeira, permanentemente irrigado por águas cristalinas que serpenteiam por desertos de faroeste americano e percorrem túneis mais modernos que o trem-bala). O monumento à criatividade lulopetista deveria ser concluído em 2010. Ficou para 2012, depois para 2014 e agora não tem prazo para sair do mundo da ficção."

Nessa história secular, pode ser que surja um político seguidor (apóstolo) de d. Hélder que queira dar jeito em tudo; cure o câncer do sertão nordestino: da pobreza à seca. No instante, se orgulhará e baterá no próprio peito por seu feito; depois, mais tarde, perceberá que precisará de outras doenças sociais, controladas em UTI, para manter seu ganha-pão e aumentar seu patrimônio, à custa de um discurso, diga-se de passagem, verborrágico, vigarista e oportunista.

Na vida real, o sertão vai virar mar, só na letra da música de Sá e Guarabira. O sertão sempre será o sertão árido, seco, pobre e explorado. Tudo que pavimenta o caminho e sustenta a retórica política.

Termino ponderando. Os inocentes e bons, se tiverem alguma chance de alcançar um status político, irão atrás das curas para os males sociais. Os hipócritas e covardes (a grande maioria) continuarão sugando, acumulando eleições e protelando doenças, em detrimento de uma pregação e de uma razão cujo único fim é o seu bem-estar pessoal.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / Fevereiro  de 2014.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

O ex-covarde

Nota: Trago ao Blog um dos melhores textos de Nelson Rodrigues. Extraí do livro de crônicas que acabei de ler "A cabra vadia". Nelson Rodrigues é delicioso de ler. Sagaz, inteligente, contemporâneo e cheio de bom humor. Suas histórias do cotidiano, misturam persanalidades vivas (da época) com outras imaginárias, como a cabra vadia no terreno baldio, a vizinha gorda e o Palhares (o canalha). Aproveitem Nelson, ele é excelente! 


Nelson Rodrigues

Entro na redação e o Marcelo Soares de Moura me chama. Começa: - "Escuta aqui, Nélson. Explica esse mistério." Como havia um mistério, sentei-me. Ele começa: - "Você, que não escrevia sobre política, por que é que agora só escreve sobre política?" Puxo um cigarro, sem pressa de responder. Insiste: - "Nas suas peças não há uma palavra sobre política. Nos seus romances, nos seus contos, nas suas crônicas, não há uma palavra sobre política. E, de repente, você começa suas "confissões". É um violino de uma corda só. Seu assunto é só política. Explica: - Por quê?"

Antes de falar, procuro cinzeiro. Não tem. Marcelo foi apanhar um duas mesas adiante. Agradeço. Calco a brasa do cigarro no fundo do cinzeiro. Digo: - "É uma longa história." O interessante é que outro amigo, o Francisco Pedro do Couto, e um outro, Permínio Ásfora, me fizeram a mesma pergunta. E, agora, o Marcelo me fustigava: - "Por quê?" Quero saber: - "Você tem tempo ou está com pressa?" Fiz tanto suspense que a curiosidade do Marcelo já estava insuportável.

Começo assim a "longa história": - "Eu sou um ex-covarde." O Marcelo ouvia só e eu não parei mais de falar. Disse-lhe que, hoje, é muito difícil não ser canalha. Por toda a parte, só vemos pulhas. E nem se diga que são pobres seres anônimos, obscuros, perdidos na massa. Não. Reitores, professores, sociólogos, intelectuais de todos os tipos, jovens e velhos, mocinhas e senhoras. E também os jornais e as revistas, o rádio e a tv. Quase tudo e quase todos exalam abjeção.

Marcelo interrompe: - "Somos todos abjetos?" Acendo outro cigarro: - "Nem todos, claro." Expliquei-lhe o óbvio, isto é, que sempre há uma meia dúzia que se salve e só Deus sabe como. "Todas as pressões trabalham para o nosso aviltamento pessoal e coletivo." E por que essa massa de pulhas invade a vida brasileira? Claro que não é de graça nem por acaso.

O que existe, por trás de tamanha degradação, é o medo. Por medo, os reitores, os professores, os intelectuais são montados, fisicamente montados, pelos jovens. Diria Marcelo que estou fazendo uma caricatura até grosseira. Nem tanto, nem tanto. Mas o medo começa nos lares, e dos lares passa para a igreja, e da igreja passa para as universidades, e destas para as redações, e daí para o romance, para o teatro, para o cinema. Fomos nós que fabricamos a "Razão da Idade". Somos autores da impostura e, por medo adquirido, aceitamos a impostura como a verdade total.

Sim, os pais têm medo dos filhos, os mestres dos alunos. o medo é tão criminoso que, outro dia, seis ou sete universitários curraram uma colega. A menina saiu de lá de maca, quase de rabecão. No hospital, sofreu um tratamento que foi quase outro estupro. Sobreviveu por milagre. E ninguém disse nada. Nem reitores, nem professores, nem jornalistas, nem sacerdotes, ninguém exalou um modestíssimo pio. Caiu sobre o jovem estupro todo o silêncio da nossa pusilanimidade.

Mas preciso pluralizar. Não há um medo só. São vários medos, alguns pueris, idiotas. O medo de ser reacionário ou de parecer reacionário. Por medo das esquerdas, grã-finas e milionários fazem poses socialistas. Hoje, o sujeito prefere que lhe xinguem a mãe e não o chamem de reacionário. É o medo que faz o Dr. Alceu renegar os dois mil anos da Igreja e pôr nas nuvens a "Grande Revolução" russa. Cuba é uma Paquetá. Pois essa Paquetá dá ordens a milhares de jovens brasileiros. E, de repente, somos ocupados por vietcongs, cubanos, chineses. Ninguém acusa os jovens e ninguém os julga, por medo. Ninguém quer fazer a "Revolução Brasileira". Não se trata de Brasil. Numa das passeatas, propunha-se que se fizesse do Brasil o Vietnã. Por que não fazer do Brasil o próprio Brasil? Ah, o Brasil não é uma pátria, não é uma nação, não é um povo, mas uma paisagem. Há também os que o negam até como valor plástico.

Eu falava e o Marcelo não dizia nada. Súbito, ele interrompe: - "E você? Por que, de repente, você mergulhou na política?" Eu já fumara, nesse meio-tempo, quatro cigarros. Apanhei mais um: - "Eu fui, por muito tempo, um pusilânime como os reitores, os professores, os intelectuais, os grã-finos etc, etc. Na guerra, ouvi um comunista dizer, antes da invasão da Rússia: - "Hitler é muito mais revolucionário do que a Inglaterra." E eu, por covardia, não disse nada. Sempre achei que a história da "Grande Revolução", que o Dr. Alceu chama de "o maior acontecimento do século XX", sempre achei que essa história era um gigantesco mural de sangue e excremento. Em vida de Stalin, jamais ousei um suspiro contra ele. Por medo, aceitei o pacto germano-soviético. Eu sabia que a Rússia era a antipessoa, o anti-homem. Achava que o Capitalismo, com todos os seus crimes, ainda é melhor do que o Socialismo e sublinho: - do que a experiência concreta do Socialismo".

Tive medo, ou vários medos, e já não os tenho. Sofri muito na carne e na alma. Primeiro, foi em 1929, no dia seguinte ao Natal. Às duas horas da tarde, ou menos um pouco, vi meu irmão Roberto ser assassinado. Era um pintor de gênio, espécie de Rimbaud plástico, e de uma qualidade humana sem igual. Morreu errado ou, por outra, morreu porque era "filho de Mário Rodrigues". E, no velório, sempre que alguém vinha abraçar meu pai, meu pai soluçava: - "Essa bala era para mim." Um mês depois, meu pai morria de pura paixão. Mais alguns anos e meu irmão Joffre morre. Éramos unidos como dois gêmeos. Durante 15 dias, no Sanatório de Correias, ouvi a sua dispnéia. E minha irmã Dorinha. Sua agonia foi leve como a euforia de um anjo. E, depois, foi meu irmão Mário Filho. Eu dizia sempre: - "Ninguém no Brasil escreve como meu irmão Mário." Teve um enfarte fulminante. Bem sei que, hoje, o morto começa a ser esquecido no velório. Por desgraça minha, não sou assim. E, por fim, houve o desabamento de Laranjeiras. Morreu meu irmão Paulinho e, com ele, sua esposa Maria Natália, seus dois filhos, Ana Maria e Paulo Roberto, a sua sogra, D. Marina. Todos morreram, todos, até o último vestígio.

Falei do meu pai, dos meus irmãos e vou falar também de mim. Aos 51 anos, tive uma filhinha que, por vontade materna, chama-se Daniela. Nasceu linda. Dois meses depois, a avó teve uma intuição. Chamou o Dr. Sílvio Abreu Fialho. Este veio, fez todos os exames. Depois, desceu comigo. Conversamos na calçada do meu edifício. Ele foi muito delicado, teve muito tato. Mas disse tudo. Minha filha era cega.

Eis o que eu queria explicar a Marcelo: - depois de tudo que contei, o meu medo deixou de ter sentido. Posso subir numa mesa e anunciar de fronte alta: - "Sou um ex-covarde." É maravilhoso dizer tudo. Para mim, é de um ridículo abjeto ter medo das Esquerdas, ou do Poder Jovem, ou do Poder Velho ou de Mao Tsé-tung, ou de Guevara. Não trapaceio comigo, nem com os outros. Para ter coragem, precisei sofrer muito. Mas a tenho. E se há rapazes que, nas passeatas, carregam cartazes com a palavra "Muerte", já traindo a própria língua; e se outros seguem as instruções de Cuba; e se outros mais querem odiar, matar ou morrer em espanhol - posso chamá-los, sem nenhum medo, de "jovens canalhas".

(14 de Janeiro de 1968)

RODRIGUES, Nélson. In A cabra vadia (novas confissões), Livraria Eldorado Editora S.A., Rio de Janeiro, s/data, págs. 7-10. 

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / Fevereiro  de 2014.