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sexta-feira, 26 de outubro de 2012

A rebentação

Se procurarmos nos fóruns de discussão na rede de computadores, iremos encontrar várias interpretações para o mesmo assunto, onde para você (e para mim) só tem uma resposta, uma convicção e afirmação. Confrontaremos com inúmeras discordâncias e pontos de vistas, porque cada um enxergará sob seu viés. O que nos faz refletir mais.

Basta recorrer a uma análise simples de qualquer obra literária ou filme, verá que cada um tem algo diferente a dizer. Ou aquilo que mais lhe chamou atenção. Atentamos mais aos capítulos e passagens que nos aflige diretamente, porque o natural do subconsciente é registrar, tão somente, aquilo que nossa alma mais necessita se alimentar naquele instante. De uma forma bem simplista e clara.

Às vezes, os livros e filmes passam por nós e anos mais tarde, aquela cena ainda permanece tatuada em nossa memória. Uma hora irá desflorar, e iremos entender o porquê; e tudo se fechará, como uma peça que faltava naquele pensamento nebuloso e confuso.

No filme “Náufrago” de 2001 — mais uma grande obra desenhada por Tom Hanks — iremos nos deparar com várias mensagens. Cada um irá contar aquilo que mais lhe afetou.

A trama narra a história de um executivo de uma empresa de entregas — FedEx —, que era uma espécie de workaholic e pouca importância dava à família, às pessoas e ao convívio social. Sua vida era o trabalho e só. Depois da pane no avião onde viajava, ele se torna o único sobrevivente da queda e vai parar numa ilha, isolada num canto qualquer do planeta. O restante da tripulação morre e ele fica preso a esse mundo pequeno, desabitado e sem vida aparente. O que é vida afinal?

Ali desenvolve habilidades manuais e primitivas para sobreviver a sua diminuta e solitária vida. Suas necessidades agora se baseiam em habitar, se proteger das intempéries, se alimentar, e assim como um homem das cavernas, “descobrir” o fogo, atritando alguns gravetos.

O dilema de Chuck Noland, papel de Tom Hanks, vai além do fisiológico e do subsistente; ele queria sair daquela vida limitada e encontrar novamente sua civilização; o convívio das pessoas, a cidade barulhenta, o trabalho, a família, sua miséria cotidiana... Sobreviver já não era sua sorte. A solidão era cruel e uma companheira incômoda; o que fez de uma simples bola de voleibol seu alter ego, o amigo inseparável com quem conversava muitas vezes e por isso passou a chamá-la de “Sr. Wilson”. Uma forma de ouvir seu interior.

Mas qual é o ponto do filme?

Para mim, está condensado no desafio em construir uma embarcação que pudesse alcançar o alto-mar, a sua salvação. Malgrado, ali havia um busílis não calculado por ele; seu estorvo era a rebentação que quebrava alta e distante da praia; ultrapassar aquelas altas ondas, que sempre o devolvia ao ponto de partida, à praia da sua ilha deserta. Ele tentava e o mar o arremessava de volta. Aquela rebentação era a barreira que o mantinha preso na sua angústia, sua tragédia maior, no seu mundinho defectível e solitário; sair daquela melancolia que o aprisionava por 04 anos se tornava cada vez mais difícil.

Passados aqueles anos, experiente e conhecedor do ambiente que agora vivia, ele pensou: era preciso mais do que construir uma embarcação; era preciso estudar e entender os ventos, as marés, as estações do ano; e num momento único e derradeiro haveria uma chance de quebrar as ondas gigantes. Antes teria de construir uma embarcação segura, que pudesse levá-lo de volta à vida. Em mar aberto, os bons ventos o levariam para longe e assim ser alcançado por uma mão salvadora, em águas brandas. Lançando-se ao mar aberto, como uma vida longa e ampla, a possibilidade de encontrar a salvação era maior. Ele só tinha que vencer aquela rebentação.

Tudo que traçou deu certo, ele venceu as ondas. A vida já não era mais aquela miserável ilha. Ele estava pronto para ser resgatado, as correntes da prisão foram rompidas; e ele agora navegava em mar aberto e calmo, até ser resgatado por um navio cargueiro. E tudo nele se transforma a partir desse ponto, dessa passagem.

Numa situação análoga, a vida tem feito seres humanos presos em ilhas desertas que não conseguem vencer a rebentação, e sair para mar aberto; por medo, por covardia e em muitas vezes por ignorância vivem como eternos aprendizes de si. Aquele ser conforta-se que o mundo é uma ilha mesmo e aqueles que o quiserem, que venham até ele. Alguém se habilita?

Dentro dos trens de metrô onde viajei pela Europa, era esta ilha de gente que se via; em comunicação única e exclusivamente com seu iphone. Rindo solitariamente das fotos que compartilhavam ou das mensagens que abriam; sempre com ninguém presente, como um ser distante e ausente.

Numa conversa de botequim — aprecio e aprendo muito! — falávamos sobre uma mulher que, à luz dos 70 anos, vivia em sua ilha deserta e desabitada. Qualquer convívio fora do seu mundo revelava o seu lado amargo, sombrio, agressivo, infantil, histérico, com proclamo de vítima social e não aceita por ninguém — sem caráter social. Pensei: com a vida quase chegando ao fim e ela ainda não aprendeu? E não aprendeu mesmo.

É premissa, para viver em sociedade, ser cortês, ter paz de espírito, ter sensatez, bom humor, aceitar brincadeiras e muitas vezes não dizer o que pensa sobre tudo que vem à cabeça. O que não é o caso dessa senhora; criança mimada, que o “mundo não quer compreender”, e com ele não aprendeu com seus tropeços e quedas. Algum momento da vida a tornou assim? Creio que sim: uma fala, um gesto de alguém a fez viver na defensiva e ser intolerante aos outros, sem percepção de si. Com longínqua idade para aceitar a transformação, ela não consegue e já não quer mais construir sua embarcação; romper a rebentação que aprisiona em sua ilha egocêntrica. Mundo pequeno e cruel. Quem irá visitá-la na sua melancolia? Comentamos e apontamos, mas, por resignação, acabamos sentindo pena.

O mar da idade, quando se quer alcançar (mesmo aos 70 anos), é aberto e visto num horizonte de paz. Foi uma luta do barco com a rebentação; ou dos braços cansados nadando sobre revolta maré. Vencer as ondas! Almejar pelo mundo civilizado e social; esperar por mãos afáveis, navegar sereno na embarcação que o vento já conduz sem medo; por fim, encontrar terras habitadas por pessoas e não por iphones.

Mas quanto aos maremotos? Asseguro que minha embarcação é robusta para atravessar. Não haverá novo naufrágio, não retornarei à ilha deserta de mim — all by milself. Não comerei o pão que o diabo deixou amassado, porque simplesmente não quero mais tal condenação. A rebentação já passou, e o maior triunfo é encontrar um porto seguro para viver em terra firme e civilizada.

Cast away — o título em inglês de “Náufrago”. Tudo termina com o personagem parado num cruzamento de duas estradas, num lugar também deserto e incerto — sem setas. A escolha agora é do caminho, porque qualquer seja o escolhido, ele estará lá na sublimação, de corpo e agora também com a alma. Velas ao vento.

© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / outubro de 2012

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Sou brasileiro, mas não tenho orgulho

Desculpe. Mas eu não faço parte do coro daqueles que vão a ginásios e estádios esportivos gritar “SOU BRASILEIRO COM MUITO ORGULHO”. Como posso ter orgulho de um país, cuja educação é uma das piores do mundo, em 88º lugar; onde a saúde, que deveria vir de graça a nós, pelos impostos altos que pagamos, obriga-nos pagar mais pelo particular, para ter um atendimento melhor. E achamos que é isso mesmo e tudo está bem. Não está! Como posso ter orgulho de um país, onde os meios de transporte públicos estão sucateados e não funcionam, fazendo cada um de nós um refém do automóvel, que depois temos que pagá-lo em dolorosas prestações; e com anciãos e deficientes físicos amargando uma vida entre quatro paredes, porque as ruas, com suas calçadas esburacadas, não lhes permitem se locomover com segurança. Como posso ter orgulho de um país, onde há mendicância pelas cidades onde passamos, e não é de imigrantes tentando se estabelecer no país, mas de brasileiros mesmos, sem emprego, sem moradia e sem ter o que comer. Onde se criam leis de cotas raciais para pôr fim a tal “desigualdade social”, onde deveria, sim, era investir em educação básica para todos, sem distinção de cor de pele e credo religioso.  Como posso ter orgulho de um país, onde a lei que mais impera é a “Lei de Gerson”, porque brasileiro gosta de levar vantagem em tudo. Certo? Errado, Sr. Gerson! Como posso ter orgulho de um país, onde o traficante de droga ostenta, empunha armas de grosso calibre e tem mais autoridade que o poder constituído pelo voto que demos nas urnas; onde as pessoas acham graça e votam pela alegria do palhaço que diz “pior não fica”. E achamos que é isso mesmo e tudo está bem. Não está! Como posso ter orgulho de um país, onde as pessoas se emocionam e opinam sobre novelas, mas são incapazes de ler as páginas políticas de um jornal e se indignar com tudo. Como posso ter orgulho de um país, onde a maioria dos postulantes almeja um cargo político, porque no fundo, pretendem se enriquecer com a política, como muitos que já estão lá. Como posso ter orgulho de um país, onde as obras públicas são superfaturadas e dinheiros desviados para abastecer campanhas políticas; onde carros-fortes saem dos bancos com milhões de reais, também para abastecer esquemas de corrupção, como o mensalão; onde há desonestidade em todos os níveis sociais, desde o mais pobre ao mais rico. Como posso ter orgulho de um país, onde um partido político quer se estabelecer único e soberano em todas as esferas de poder, nem que pra isso tenha que mentir, enganar, roubar, extorquir, infringir, aniquilar e eliminar quem estiver pelo caminho. Pela simples razão de poder. Como posso ter orgulho deste país, de gente intelectualmente e culturalmente miserável. Como posso ter orgulho de um país, que empobrece seu povo a cada dia, sugando-lhe até última gota de seu sangue. Aceitamos e achamos que é isso mesmo e tudo está bem. Não está! Agora, diga com sinceridade, você teria orgulho?
© Antônio de Oliveira / arquiteto e urbanista / outubro de 2012.